CARPEAUX REDESCOBERTO
Bruno Garschagen
O grande lançamento editorial brasileiro
da temporada, na área dos ensaios, é uma coletânea
de textos de Otto Maria Carpeaux, o intelectual austríaco
que desembarcou no Brasil fugindo do nazismo, sem saber português,
e ampliou os horizontes da crítica literária no país.
É um conjunto notável pela amplitude de temas, pela
erudição e pelo método, valorizado por uma
edição que desvenda a força criativa do autor
e, também, as suas contradições.
Liberdade, regimes discricionários e sentimento
religioso são temas recorrentes nos textos do austro-brasileiro
Otto Maria Carpeaux que integram o segundo volume de seus Ensaios
Reunidos - 1946-1971 (no primeiro, de 1999, foram reunidas as
seis coletâneas lançadas em livro entre 1942 e 1960).
Mais do que permear os ensaios, constituem uma base que lhes confere
unidade crítico-filosófica.
Nada escapa à santíssima trindade
do pensamento do católico convertido Carpeaux (1900-1978),
um dos mais importantes críticos literários do país:
a vida e a obra do historiador Johan Huizinga, o liberalismo de
Karl Popper e Friedrich Hayek, o anti-heroísmo de Bernard
Shaw, o virtuosismo do violinista Niccolò Paganini.
Carpeaux construiu sua linha de pensamento na
formulação de problemas, não na listagem de
soluções, o que pode soar inconclusivo, lembra o filósofo
Olavo de Carvalho na revista Portuguese Literary & Cultural
Studies (número 4, 2000), da Universidade de Massachusetts.
Organizador do primeiro volume de textos e autor do genial ensaio
introdutório [daquele volume], Carvalho especula sobre as
temíveis dúvidas e contradições que
sacudiam a alma do escritor, cujo instrumento de sondagem das obras
e das épocas era "o próprio estado interior de
perplexidade". Mais do que refutar ou celebrar, ele se punha
a distinguir.
Suas ambições intelectuais eram
voltadas para o pensamento universal, filosófico, e não
somente para a crítica, para a qual foi levado pelas circunstâncias
de refugiado que precisava sobreviver e pagar as contas num país
desconhecido. Assim, é possível compreender seu impulso
intelectual na elaboração dos textos, nos quais a
criação literária estava integrada aos aspectos
sociais, políticos, econômicos.
Carpeaux formulou sua teoria crítica na
composição do pensamento do italiano Croce e dos alemães
Friedrich Hegel, Wilhelm Dilthey e Max Weber. Na trilha de Croce,
investigou a arte como intuição e como algo que não
se limitava à classe social de seus criadores; de Hegel,
buscou a aplicabilidade da dialética; recorrendo a Dilthey,
priorizou a compreensão da intenção e do sentido
subjacentes aos fenômenos humanos e sociais; valendo-se de
Weber, aplicou o método de investigar conjuntamente a causa
e o sentido oculto no estudo histórico e sociológico.
No segundo volume dos Ensaios Reunidos
aparece o Carpeaux liberal, da linha de Croce e do filósofo
espanhol Ortega y Gasset. No texto Agonia do Liberalismo
(1946), condena o encerramento do seu significado em termos estritamente
econômicos ou políticos. Em Capitalismo e Discussão
(1947), levanta a hipótese de o atraso econômico brasileiro
durante a colonização ter raízes na mentalidade
católica e no espírito burguês de feição
jansenista portuguesa, derivado da francesa. São apenas dois
exemplos do brilho intelectual de Carpeaux num volume que reúne
205 artigos originalmente publicados em jornais, até agora
inéditos em livro, e três prefácios. No terreno
dos ensaios, foi o melhor lançamento de 2005 no Brasil. Os
dois livros, aliás, foram editados num esforço admirável
dos organizadores, Olavo de Carvalho e Christine Ajuz, e da Topbooks,
que planeja lançar mais oito livros do crítico [em
parceria com a Editora da UniverCidade].
EM VIENA - Otto Karpfen, nome de batismo, nasceu
em 9 de março de 1900 na cosmopolita Viena, Áustria.
Judeu por parte de pai, converteu-se ao catolicismo, religião
da mãe, aos 32 anos. Abandonou a faculdade de direito para
estudar filosofia, letras, física, matemática e química,
doutorando-se em ciências naturais. O universalismo e ecumenismo
de seu pensamento advêm da visão de mundo barroco-católica.
Durante anos, escreveu para a Der Christlische Ständestaat,
a principal revista católica austríaca, que apoiava
o governo do ultraconservador chanceler Engelbert Dolfuss, assassinado
em 1934 por partidários da anexação à
Alemanha nazista.
O período vienense, durante o qual publicou
cinco livros, é contado por Mauro Souza Ventura no livro
De Karpfen a Carpeaux (Topbooks, 2002). O escritor negava-se
a falar sobre ele, especialmente depois de ter sido abjetamente
acusado de cumplicidade com o nazismo por intelectuais brasileiros,
em 1943, por conta de uma chinelada crítica no escritor e
queridinho das esquerdas Romain Rolland. Olavo de Carvalho vê
no episódio (e no fato de o catolicismo ser malvisto entre
os amigos intelectuais) uma das várias razões que
inibiram a fé religiosa em Carpeaux, que a escondeu até
sufocá-la.
O temor à perseguição nazista,
afinal, é que trouxera o escritor ao país. Em 1938,
concretizado o Anchluss, a anexação da Áustria
pela Alemanha, Carpeaux fugiu com sua mulher, Helena, para Antuérpia,
na Bélgica. No ano seguinte, sentindo-se inseguro na Europa,
mudou-se para o Brasil com a ajuda do Vaticano. Conhecia 11 idiomas,
mas desembarcou no país sem falar português.
Sua entrada no jornalismo brasileiro se deu pelas
mãos do poderoso crítico literário Álvaro
Lins, em 1941. Adotou os sobrenomes Maria por devoção
mariana e Carpeaux pelo prestígio do francês entre
os intelectuais brasileiros.
Em pouco tempo, destacou-se nos meios literários,
jornais e revistas pela erudição, honestidade e veia
polêmica. Entre 1944 e 1945, por sugestão do escritor
José Lins do Rego, escreveu os rascunhos da monumental História
da Literatura Ocidental, cujo primeiro dos oito volumes foi
publicado em 1959. De 1946 a 1958, foram publicadas suas coletâneas
de ensaios, culminando em Uma Nova História da Música.
O turning point se deu em 1964, com o
golpe militar. Foi um dos jornalistas que mais combateram as arbitrariedades
do regime. A esquerda, na qual se alinhavam muitos de seus amigos
íntimos, "ganhou" Carpeaux e dele fez um ídolo.
A entusiasmada adesão chegou ao nível desesperador
de ele defender a poesia engajada, como conta o poeta e tradutor
Ivan Junqueira no prefácio deste segundo volume de seus ensaios.
Em 1968, Carpeaux deixou a crítica literária
para se dedicar integralmente ao jornalismo político, de
combate à ditadura. Seus textos ácidos incomodaram
os militares, e ele perdeu espaço na grande imprensa. Nem
isso o fez retornar à literatura. Colaborou com jornais alternativos
e participou ativamente de manifestações contra o
regime. Pagou o arroz com feijão escrevendo verbetes para
enciclopédias.
Olavo de Carvalho observa precisamente que esse
período marca "a gradativa perda da força criativa"
do intelectual com textos muito aquém dos primeiros tempos
no Brasil, "até chegar à completa mediocridade",
marcada pela rasa hagiografia Alceu Amoroso Lima (Paz e Terra,
1978).
No fim da linha, Carpeaux deixou-se levar pela
amargura ao considerar que tinha desperdiçado a vida. Morreu
de ataque cardíaco, aos 78 anos, com a sensação
de que falhara. Sua obra mostra o contrário: que só
um espírito superior poderia deixar tal legado.
revista PRIMEIRA LEITURA
número 48
01/02/2006
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Sinopse
/ coluna de Daniel Piza
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