OTTO MARIA CARPEAUX: A BIBLIOTECA ABERTA
Fábio de Souza Andrade
Em "Os Mistérios da Biblioteca",
artigo reunido no segundo e alentado volume de seus "Ensaios
Reunidos", Otto Maria Carpeaux (1900-1978) relata o "frisson"
dos minutos em que, ainda estudante, aguardando uma entrevista com
o recém-eleito reitor da Universidade de Viena, pôde
passar em revista apressada as estantes de sua biblioteca, investigando,
nas escolhas literárias, a intimidade de um espírito
europeu universalista, humanista e erudito, que valia o seu respeito.
Relendo os escritos dispersos, publicados em
jornais ("A Manhã", "O Jornal" e "O
Estado de S.Paulo", principalmente), entre 1946 e 1969, descobrimo-nos
subitamente instalados nos bastidores da formação
intelectual de várias gerações de brasileiros
pensantes, guiadas pela erudição assombrosa e nada
morna do mestre vienense, em seu esforço contínuo
de enriquecimento do debate de idéias brasileiro.
Na chegada ao Brasil, em 1939, fugindo do pesadelo
nazista (era filho de pai judeu e mãe católica), Carpeaux
não foi unanimidade, mas de imediato conquistou papel importante
no cenário local. A sólida formação
européia - estudou filosofia, letras e ciências naturais
em Viena e militou no jornalismo - resultou numa vocação
desbravadora, onívora, capaz dos grandes panoramas descritivos
que não perdiam a dimensão concreta das singularidades.
Em Croce, dizia, aprendeu as raízes históricas
do processo artístico e delas jamais descuidou. Na base do
seu pensamento estão as leituras dos culturalistas alemães
e italianos do começo do século, sustentando uma crítica
da arte que sempre buscou a construção de pontes entre
as diversas esferas da atividade humana (estética, política,
econômica). Como Ortega y Gasset, um de seus duplos intelectuais,
sabia o quanto indústria cultural e sociedade de massas se
opunham a estes esforços compreensivos.
A dimensão enciclopédica de seu
conhecimento é de outro tempo e, durante os anos 60 e 70,
se literalizou - foi responsável, ao lado de Antonio Houaiss,
pelos verbetes de humanidades da Barsa, da Delta-Larousse e da Mirador.
Escreveu uma "História da Literatura Ocidental",
em oito volumes, e uma "Breve História da Música",
que transitavam pela diversidade de escolas nacionais, ancoradas
numa profunda compreensão dos estilos de época.
A abrangência fáustica desse projeto,
abraçado como missão e realizado no perecível
papel dos jornais, certamente implicou erros de percurso: uma ou
outra avaliação apressada, que se fiava exclusivamente
na intuição, algumas generalizações
que, tivesse nova chance, certamente Carpeaux matizaria. Mas a recompensa
aos leitores vale todos os riscos, levantando as lebres de autores
e tradições esquivos e pouco conhecidos entre nós,
ainda que com o gesto breve de somente apontá-los, aprofundando
e atualizando o debate sobre os mestres e incorporando elementos
das correntes interpretativas que surgiram ao longo de sua produção
crítica.
O espectro de autores que tratou é amplo
o suficiente para, em sua "História da Literatura Ocidental",
ocupar um dos oito volumes apenas com índices onomásticos,
que tampouco faltam à reunião de seus dispersos. Certamente,
seu gosto pelo barroco e pelos clássicos fala alto na excelência
dos ensaios a eles dedicados. Mas mesmo nos demais nunca falta interesse.
Carpeaux tinha desenvolvida ao extremo a capacidade de apreender
a complexidade dos assuntos mais diversos, comunicar o essencial
de maneira simples e apresentá-los a partir de um vivo sentimento
da contradição.
No Brasil, suas relações com a
militância católica (converteu-se em 1932) e o governo
austríaco valeram-lhe, inicialmente, polêmica e reputação
política controvertida. Ao cabo de quase meio século
de participação pública no Brasil, como crítico,
historiador e jornalista, opositor de primeira hora do golpe militar,
conquistou o respeito e o reconhecimento de autores ideologicamente
tão diversos como Antonio Candido e Olavo de Carvalho. Ainda
lemos seus ensaios com o gosto dos que descobrem ângulos novos
de mundos desconhecidos.
FOLHA DE S.PAULO
21/01/2006
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