SINOPSE / COLUNA DE DANIEL PIZA
(...) lendo intermitentemente o volume II dos
Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux (Topbooks/ UniverCidade),
fiquei matutando sobre isso que se perdeu: a capacidade de observação
livre e direta, de deter calmamente a atenção sobre
o que nos cerca, de não se afobar até para que o cérebro
seja mais rápido e preciso. Hoje todas as experiências
são mediadas. Passam por uma "mídia", pela
mediação de um equipamento e/ou de uma simbologia;
é um mundo virtual, indireto. Até turismo tem sido
feito por simulações tecnológicas.
Carpeaux também seria uma mediação,
alguém a interferir no contato entre indivíduo e exterior.
Com sua erudição, com seu enciclopedismo, seria como
um personagem de Elias Canetti ou Italo Svevo, fechado em sua biblioteca
porque inábil para o convívio social, inepto para
a rotina real, uma traça de livros sem vocação
para enfrentar a luz do sol. É comum a figura do intelectual
que seguiu esse caminho porque desengonçado, feio ou tímido
demais; inibido pelo inundo, buscou uma vivência paralela,
na qual se sente superior aos demais, aos "normais". Para
completar, raros são os intelectuais que, em vez de demonstrar
os prazeres da leitura e da cultura, parecem provas vivas do contrário,
fanatizados por ideologias, por sistemas, pela Grande Obra que ainda
hão de escrever para salvar a humanidade. Mas Carpeaux não
é professoral. Seus ensaios ocupam em média de três
a cinco páginas, são escritos de modo claro e esclarecedor,
dividem seu conhecimento sem citações desnecessárias.
Esse austríaco batizado Otto Maria Karpfen - que chegou ao
Brasil em 1939, aos 39 anos, fugindo da guerra, afrancesou o sobrenome
e em apenas três anos aprendeu o português - era acima
de tudo um humanista. Apesar da formação católica
e da conversão posterior ao marxismo, escreveu o seguinte,
num artigo curiosamente intitulado "O fim da história"
aqui neste Estado, em 1958: "Por que esperar soluções
finais?" Era o abandono ao idealismo que o tentara a vida inteira,
presente na maioria dos seus textos, das suas interpretações
da herança cultural européia, principalmente no volume
I.
(...) Diante de uma cultura sólida como
a de Carpeaux, para a qual as 942 páginas do livro são
metáfora perfeita, o leitor tende a se esfarelar. Eu saio
anotando tudo: frases memoráveis, dúvidas, uma série
de nomes de escritores que desconheço - o croata Krleza,
o holandês Vestjdik, o tunisiano lbn Khaldun. Ele também
prefere Keats e Baudelaire entre os românticos, até
porque foram além do romantismo ao beber nos clássicos.
Partilha a admiração por livros como Petersburgo,
de Biély, e lê Graciliano como um autor muito acima
do regionalismo. Introduz os leitores daqueles anos 50-60 a hispano-americanos
como Rulfo e Carpentier e demole o concretismo. Nota que o "segundo
nascimento" de Machado, com Brás Cubas, veio da perda
da fé. Exalta a grandeza de Heine como jornalista e aponta
a confusão de Ortega y Gasset entre democracia e massificação.
E afirma sem hesitar que "o grande erro alemão foi no
fundo europeu", a união de nacionalismo e cristianismo.
Felizmente, tem defeitos. O idealismo, que o leva a seguir a crítica
de Croce e T. S. Eliot, associa demais arte e moral. Autores de
pendor católico, como Octavio de Faria, ou politizados, como
Pratolini, são superestimados. Não é verdade
que Conrad não dominava a língua inglesa, ou que Mozart
deve ser apreciado sem os arabescos. Sartre, Hemingway e Bandeira
não estão em tal panteão. E o liberalismo não
morreu, nem na filosofia nem na economia; está mais vivo
do que nunca. Mas gostamos de ler Carpeaux até para discordar.
É claro que Carpeaux é complicado
para o leitor iniciante, apesar de sua legibilidade e rigor. Sua
cultura parece inatingível; ele elogia coisas demais, em
vez de separar incisivamente as que ficarão para as novas
gerações; seus comentários carecem de exemplos
práticos, de paralelos com a vida, com as ansiedades cotidianas;
sua cultura e a da literatura, da música erudita e da pintura,
do "cânone ocidental", e nossa impressão
é de que cinema, música popular, esporte ou noticiário
político não valem seu tempo. Mesmo assim, sabemos
que é alguém que vê a cultura como uma forma
de expandir a sensibilidade, não de substituir as experiências
reais pelas simbólicas. Simultaneamente, acredita no conhecimento
como busca inerente à biologia do Homo sapiens sapiens, ser
lingüístico, que equaciona e traduz o que vê.
Ler um livro é viver uma experiência mediada, mas tanto
melhor ele será se disser respeito à nossa experiência
particular; a vivência direta não deveria ser oposta
à simbólica. Não existe essa divisão
nítida entre natureza e cultura.
(...) Otto Maria Carpeaux, que era um mestre
da resenha, capaz de informar, contextualizar, analisar e opinar
no mesmo texto, faz uma advertência que vem a calhar para
alguns resenhistas e leitores brasileiros: "Só o pedantismo
ou o despeito costumam denunciar pequenos erros e lapsos".
Caderno Cultura
O ESTADO DE S.PAULO
São Paulo
22/01/2006
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