A CRÍTICA LIGEIRA E METÓDICA
DE OTTO MARIA CARPEAUX
Mauro Souza Ventura*
Um ensaísta dividido entre a lucidez pontual
da crítica ligeira e a tarefa metódica da interpretação.
Assim pode ser caracterizado o austríaco-brasileiro Otto
Maria Carpeaux (1900-1978), que tem duas centenas de seus inúmeros
artigos dispersos publicados agora, no segundo volume de Ensaios
Reunidos (Topbooks/UniverCidade, 942pp./ R$ 93,90).
Um dos mais importantes críticos literários
do país, Carpeaux escreveu uma infinidade de textos. Estimativa
feita em 1968 contabilizava cerca de 1.500 artigos publicados em
jornais e revistas durante quase três décadas de atividade.
Difícil saber com certeza o quanto Carpeaux escreveu. Certo
mesmo é que o leitor tem à sua disposição
mais 205 textos que até então se encontravam dispersos
e, talvez, perdidos, não fosse o trabalho da jornalista Christine
Ajuz, responsável pela penosa tarefa de estabelecimento do
texto, e, em especial, pela louvável atuação
do editor José Mario Pereira, que - em parceria com a UniverCidade
de Ronald Levinsohn - está à frente do projeto de
publicação da Obra Completa de Carpeaux, e já
anuncia para este ano a reedição, em três volumes,
de sua História da literatura ocidental.
Com exceção de alguns artigos publicados
no suplemento dominical "Letras e Artes", do jornal carioca
A Manhã, e coligidos por Alfredo Bosi na coletânea
Sobre Letras e Artes (Ed. Nova Alexandria, 1992), dos três
prefácios a obras de Manuel Bandeira, Goethe e Hemingway
e um ou outro texto incluído na coletânea Reflexo e
Realidade, de 1976, todos os demais artigos são absolutamente
inéditos em livro, transformando o grosso volume que chega
ao leitor numa preciosidade.
Esta segunda parte dos Ensaios Reunidos traz
artigos publicados nas décadas de 1940-60, escritos sob encomenda
para veículos como O Jornal e A Manhã, ambos do Rio
de Janeiro, e O Estado de S. Paulo, num ritmo quase semanal. Lá
estão os temas preferidos de Carpeaux, ou seja, literatura,
música, cultura, política e idéias. Como escreve
o poeta e crítico Ivan Junqueira no belo e esclarecedor prefácio
à coletânea, o "olhar de Carpeaux, no afã
de penetrar mais fundo nos extratos do fenômeno literário,
se esgalha em direção a outras áreas do conhecimento
que lhe são contíguas". Ciente de que não
se é um bom crítico literário sendo apenas
crítico literário, Carpeaux não hesita em transpor
as fronteiras entre as disciplinas. O resultado é, como anota
Junqueira, uma "multiforme e gigantesca prosa doutrinária",
em que a literatura não se constitui enquanto expressão
isolada, mas se deixa contaminar por todas as manifestações
do espírito.
Autor de uma obra composta de artigos, ensaios,
prefácios e introduções, Carpeaux foi também
um ativo intelectual que desempenhou importante papel de mediador
cultural. Isto se deveu, em grande parte, à sua atuação
na imprensa, comentando autores e literaturas desconhecidos ou pouco
divulgados entre nós, como o holandês Simon Vestdijk
ou o poeta eslavo Ivan Cankar.
Mais polêmico é o caso de Franz
Kafka, objeto de seu primeiro texto publicado no Brasil. Uma das
preciosidades desta coletânea é o artigo "Fragmentos
sobre Kafka", escrito em julho de 1946 para O Jornal, em que
Carpeaux relembra, "não sem certo orgulho", ter
sido ele o autor do primeiro artigo sobre Kafka no Brasil. Trata-se
de "Franz Kafka e o mundo invisível", publicado
em 1942 em A cinza do purgatório e incluído no Volume
1 de Ensaios Reunidos, de 1999 (Topbooks/UniverCidade).
Ao escrever sobre Kafka, Carpeaux aborda um de
seus assuntos prediletos em matéria de história literária:
a confusão entre nacionalidade política e nacionalidade
lingüístico-literária. Apesar de ter nascido
em Praga e ter escrito exclusivamente em língua alemã,
o autor de O Processo não pode ser classificado nem como
escritor tcheco, nem como alemão. Isso porque, segundo Carpeaux,
durante 35 anos de sua vida, de 1883 a 1918, Kafka foi cidadão
austríaco e, também, porque a língua na qual
Kafka escreveu não é exatamente a língua alemã.
"A língua alemã falada na Áustria difere
pelo vocabulário e pela sintaxe da língua alemã
falada na Alemanha", observa o crítico.
"É um alemão sui generis,
cheio de influências eslavas, latinas, húngaras. Por
mais que os escritores austríacos de língua alemã
se esforçassem em escrever corretamente o idioma de Goethe,
não conseguiram eliminar a intervenção de 'austriacismo'.
Eis a língua de Kafka". O argumento de Carpeaux em relação
a Kafka é idêntico ao invocado pelo jovem Otto Karpfen
em A missão européia da Áustria. Neste pequeno
livro político, publicado em Viena em 1935, a independência
da Áustria é sustentada, entre outros motivos, pela
especificidade da cultura austríaca diante do avanço
do pan-germanismo nos anos 1930, que preconizava a união
da Alemanha com a Áustria.
Em sua fase brasileira, na segunda metade do
século XX, Carpeaux teve papel destacado no processo de formação
do leitor culto, como o demonstram sua participação
no projeto das enciclopédias Barsa, Delta Larousse e Mirador
e a produção de obras de caráter de divulgação,
como A Literatura Alemã, de 1964, ou a monumental História
da Literatura Ocidental, publicada entre 1959 e 1966. Como revela
o poeta Ivan Junqueira, que conviveu com Carpeaux na década
de 60 e de quem se tornou amigo e discípulo, sua influência
foi decisiva na formação de inúmeros futuros
intelectuais brasileiros. "Sua lição contribuiu
de maneira notável para o nosso amadurecimento como intelectuais",
escreve Junqueira.
Em paralelo a essas atividades, Carpeaux exerceu
durante três décadas a chamada crítica prática.
Como tal, suas formulações teóricas, necessárias
para a sobrevida acadêmica de qualquer autor, estão
disseminadas por essas centenas de artigos. Vem daí a dificuldade
de se estudar uma obra cuja aparência fragmentária
parece dissolver todo e qualquer vestígio de unidade. Um
dos méritos de Ensaios Reunidos, cujos dois volumes juntos
somam nada menos do que 375 artigos - um terceiro volume já
vem sendo preparado, contendo mais material disperso - está
justamente em resgatar para o leitor a possibilidade de uma visão
sistemática do método e dos procedimentos analíticos
de Carpeaux, colocados em prática durante quase quatro décadas.
Suas interpretações do fenômeno
artístico, sempre fortemente armadas de erudição,
deixam a lição de que as armas da crítica precisam
ser forjadas apenas e na medida em que a obra as solicita. Contrário
à aplicação mecânica e instrumental do
método crítico à obra, Carpeaux percorre um
movimento que pode ser traduzido pelo seguinte axioma: é
a obra literária que funda o método. É ela
que o elege, e não o contrário. Tudo isso e muito
mais está à disposição do leitor neste
segundo volume de seus ensaios.
* Mauro Souza Ventura é doutor em Teoria
Literária e Literatura Comparada pela USP, professor da Faculdade
Cásper Líbero e autor do livro De Karpfen a Carpeaux
(Topbooks).
JORNAL DO COMMERCIO
14/01/2006
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Sinopse
/ coluna de Daniel Piza
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