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O INDOMÁVEL RIMBAUD

Edição organizada por Ivo Barroso é referência para estudos sobre o poeta

Marcelo Jacques

“Eu quis dizer o que isso diz, literalmente e em todos os sentidos”, teria dito Arthur Rimbaud à mãe em resposta a uma pergunta sobre a significação das “pequenas histórias em prosa” que constituem “Uma estadia no inferno”. Se considerarmos que esse texto é, ao lado das “Iluminações”, o grande legado em prosa do jovem poeta das Ardenas, podemos ver na afirmação, mais do que uma frase de efeito, a síntese de uma poética que não cessou de reclamar “invenções de desconhecido”, e que, como disse Mallarmé, “nenhuma circunstância literária realmente preparou”.

“Uma estadia no inferno” e “Iluminações” fazem parte da Prosa poética de Rimbaud, organizada por Ivo Barroso, cuja segunda edição revista foi recentemente lançada pela Topbooks. Se a primeira tradução de “Uma estadia no inferno”, de 1972, já era a melhor versão brasileira da obra, as sucessivas e cuidadosas revisões realizadas, ao lado da tradução de “Iluminações” e de outras prosas inéditas, acrescidas de um trabalho minucioso de notas e comentários, fazem definitivamente desta Prosa poética uma edição de referência para os estudos rimbaudianos em língua portuguesa.

Promessa da poesia do futuro

Rimbaud invoca, de fato, desde as famosas “Cartas do vidente”, essa virtualidade indomável da língua como a promessa própria da poesia do futuro, que a “hora nova” exigiria. Não se trata, porém, de criar uma poesia pura, apartada do todo da língua e da banalidade prosaica do mundo, como quererão muitos “modernos”. Trata-se, antes, como escreverá o adolescente de 15 anos, de “encontrar uma língua” que seja “da alma para a alma, resumindo tudo, perfumes, sons, cores, pensamento agarrando pensamento e puxando”, uma língua que permita “(definir) a quantidade de desconhecido que desperta em seu tempo na alma universal”.

E, para tornar-se esse “vidente”, Rimbaud define desde então seu método: “um longo, imenso e estudado desregramento de todos os sentidos”, que implique a “eclosão” deste outro que nele pensa - “Pois EU é um outro” - para que ele possa então, a seu turno, alterar-se e, assim, abrir outras perspectivas para o seu tempo: “Que exploda em seu salto por entre as coisas inauditas e inomináveis: outros horríveis trabalhadores virão, e começarão pelos horizontes em que o outro se perdeu!”. Com Rimbaud, portanto, o vigor e a autenticidade da poesia deixam definitivamente de confundir-se com qualquer forma de espontaneidade expressiva do eu, que, ao contrário, deve, por meio do “estudo” e do “cultivo” de si, deformar: “trata-se de tornar a alma monstruosa”.

É justamente esse “combate espiritual”, “tão rude quanto a batalha dos homens”, que é encenado em “Uma estadia no inferno”, único livro efetivamente publicado por Rimbaud, e que não pode deixar de ser lido ao mesmo tempo como uma narrativa autobiográfica e como uma espécie de auto-reflexão sobre a gênese da obra do próprio poeta e suas ambições futuras. Composta logo após o incidente dos dois tiros disparados por Verlaine, em 1873, que marcaria a ruptura definitiva entre os dois, essa “descida aos infernos” foi freqüentemente considerada como uma espécie de “Adeus” - título da última seção do texto - à poesia: “Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Acreditei-me possuído de poderes sobrenaturais. Pois bem! Devo enterrar minhas imaginação e minhas lembranças! Bela glória de artista e prosador que lá se vai!”

Essa leitura foi facilitada pela fascinante história do adolescente genial que abandonou a poesia aos 20 anos para viver como um “trabalhador” na África durante 17 anos, até a morte, em 1891. Mas os estudos em torno da datação das peças que vieram a constituir as “Iluminações”, escritas em parte depois da redação da “Estadia”, permitiram reler esse “Adeus”, reensejando a perspectiva de renovação da poesia nele também de certa forma reivindicado.

Leitor confrontado com o enigma da língua

Não por acaso, desde a primeira edição, organizada por Verlaine em 1886, as “Iluminações” se iniciam com o poema “Depois do dilúvio”. Mas aqui, ao contrário do que ocorre na “Estadia”, o eu pouco se enuncia. Prevalecem imagens caracterizadas pela justaposição de frases nominais, entremeadas de enumerações feitas a partir de associações sonoras e deslizamentos semânticos, realização plena daquilo que o jovem aspirante à vidência chamara de “visão”. Diante dessa obra, confrontado ao enigma da língua e de si, o leitor não sai imune: “Este veneno permanecerá em nossas veias mesmo quando acabar a fanfarra e voltarmos à nossa antiga inarmonia”.

Marcelo Jacques é professor de literatura francesa da Faculdade de Letras da UFRJ

Caderno Prosa & Verso
O GLOBO

23/02/2008

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