O MÍSTICO SELVAGEM
Em tradução primorosa, a
Correspondência de Rimbaud
revela a gênese do poeta maldito e do explorador colonial
Silviano Santiago*
Em 1924, o jovem Carlos Drummond escreve a Mário
de Andrade: "Nasci em Minas, quando devera nascer (não
veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris.
O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado". Em
1879, o jovem Arthur Rimbaud (1854-91) escrevia de Charleville a
seu mentor: "Minha cidade natal é supremamente idiota
entre todas as cidades pequenas da província. Estamos exilados
em nossa própria pátria!!!".
A sensação de exílio no
torrão natal tem repercussões por personagens como
Emma Bovary, de Gustave Flaubert, ou Luísa, de Eça
de Queirós, e pelos poemas de Cesário Verde e reafirma
a posição de Paris como centro do projeto cultural
e artístico ocidental.
Marca de nascença
O exílio é marca de nascença
e, no caso de Flaubert e de Eça, serve para reforçar
o drama da frustração sentimental da mulher burguesa,
conhecido por bovarismo. Em Drummond e Rimbaud, a província
é o berço onde a revolta artística do poeta
se amamenta de maneira voraz e contraditória. Lá é
que nasce o "albatroz", para retomar a metáfora
de Charles Baudelaire para o poeta gauche. Em carta ao poeta Theodore
de Banville, Rimbaud proclama o futuro sucesso em Paris, resgatando
expressão do Renascimento italiano: "Anch'io, senhores
jornalistas, serei parnasiano!". E complementa: "Não
sei o que tenho dentro de mim... que quer subir à tona...".
Ao substituir parnasiano por modernista, Drummond
subscreve a ambição desmedida e a angústia
cega de Rimbaud. Se a grafia de vida de Carlos Drummond acaba por
encerrá-lo nos meandros da burocracia federal (leia-se a
crônica "A rotina e a quimera", em Passeios na
ilha), a de Rimbaud extrapola a rebeldia bronca para ambientá-lo
na loucura da boemia parisiense.
Ao dar adeus à província, ele se
lança como poeta maldito, sedutor de corações
e mentes. Em suas garras, cai Paul Verlaine (1844-96), com quem
mantém um caso amoroso, vulgarizado pelo filme Eclipse
de uma paixão, com Leonardo DiCaprio.
Dois mitos
No Rio de Janeiro, o provinciano Drummond se
transforma no mito poético da competência premiada
e, em Paris, Rimbaud inaugura o mito da juventude desregrada e suicida,
de que James Dean e Jim Morrison (The Doors) serão exemplos
mais próximos. O périplo desvairado de Rimbaud pela
província francesa, por Paris e a Europa e pelo verdadeiro
exílio em países coloniais pode ser agora acompanhado
nas próprias palavras do poeta. Primorosamente traduzida,
anotada e comentada por Ivo Barroso, sua notável correspondência
foi publicada pela Topbooks, que já nos tinha oferecido a
poesia completa.
O resultado final é uma mistura de escritas.
A biografia erudita de Barroso complementa a autobiografia em conta-gotas
de Rimbaud. O leitor fica diante dos plenos e dos vazios de um reality
show sem trapaças.
Não há por que destacar essa ou
aquela carta. A razão do volume está no todo. No entanto
a tradição dos estudos rimbaudianos nos obriga a salientar
a carta a Paul Demeny (15/5/1871), tida como leitura pessoal da
evolução da poesia francesa e manifesto da sua poesia.
Nela se lê: "O poeta se faz vidente,
por meio de um longo, imenso e racional desregramento de todos os
sentidos". As cartas africanas encantarão os leitores
familiarizados com a obra de Joseph Conrad (O coração
das trevas) e de Louis-Ferdinand Céline (Viagem ao
fim da noite). Escritas no hospital em Marselha, as cartas à
mãe e à irmã historiam a hecatombe final.
Gangrena, perna amputada, dores mortais, o caminhar
de muletas, a perna de pau... Isabelle socorre o irmão e,
entre o tom provinciano e o carola, mantém um pungente e
polêmico diário, que Ivo Barroso judiciosamente acrescenta
à edição.
Catolicismo
As palavras da irmã transfiguram o poeta
maldito e o explorador colonial em homem "justo, santo, mártir
e eleito". Depois da santa missa, anota Isabelle, um capelão
se aproxima de Rimbaud e lhe propõe que se confesse, e ele
aquiesce. Ao sair, o capelão lhe diz: "Seu irmão
tem fé".
Outro jovem provinciano, agora de nome Paul Claudel,
se extasia diante da sua descoberta. À hora da morte, o maldito
Arthur Rimbaud se convertera ao catolicismo. Segundo as palavras
do futuro dramaturgo, Rimbaud fora "um místico em estado
selvagem". O mito agradecia a egrégia contribuição.
*SILVIANO SANTIAGO é crítico literário
e escritor, autor de "Heranças" (ed. Rocco).
Autor viveu entre Europa e África
DA REDAÇÃO
Arthur Rimbaud foi um dos mais influentes autores
da literatura moderna, marcando o surrealismo e os beats norte-americanos.
Sua produção poética – cujo ápice
é Uma temporada no inferno" (1873) – foi
concebida entre os 16 e os 20 anos de idade, quando viveu em Paris.
Lá manteve relacionamento amoroso com Paul Verlaine. Após
o fim da relação, Rimbaud partiu para a África,
onde se tornou um misto de aventureiro e comerciante.
caderno Mais!
FOLHA DE S.PAULO
21/02/2010
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Cordialmente,
Arthur Rimbaud
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