CARTAS DE UM VISIONÁRIO
Chega às livrarias Correspondência,
o terceiro e último volume da obra completa de Arthur Rimbaud.
O tradutor Ivo Barroso comenta a evolução do poeta
até atingir o ponto mais alto: Iluminações,
com os primeiros versos livres.
Desde o começo do século 20, quando
os teóricos russos alcunhados de formalistas deram plena
autonomia à literatura — instituindo assim os preceitos
da crítica literária moderna — evita-se estabelecer
a relação de causa e efeito entre a vida do autor
e sua obra. Entrementes, o antigo modelo persiste de modo didático
nos mais variados métodos de ensino. Como se pudesse abalizar
a obra, a leitura de certos autores inicia-se pela sua biografia;
cada linha escrita seria forçosamente fruto de algum fato
peculiar na existência do escritor.
No caso de uma vida revolta e múltipla
como a de Arthur Rimbaud, a análise da obra dificilmente
escapa à associação com sua biografia. Um dos
grandes expoentes da poesia francesa, Rimbaud realizou o sumo de
sua produção literária entre os 15 e 21 anos,
para logo depois dar-lhe as costas e ir à África negociar
café, marfim e o que pudesse torná-lo rico (“não
tenho a intenção de passar minha vida inteira na escravidão”).
As muitas histórias criadas em torno dos excessos que cometeu
em sua vida literária, suas andanças, sua problemática
relação com o poeta Paul Verlaine e principalmente
as muitas e contraditórias interpretações sobre
seu rompimento com a poesia, tornam o mito em torno do enfant terrible
(a criança terrível, como foi alcunhado) cada vez
maior e mais vivo.
Em Arthur Rimbaud: Correspondência,
lançado pela editora Topbooks — e traduzido
pelo sempre competente Ivo Barroso —, contempla-se pela primeira
vez no país a totalidade da correspondência do poeta.
A importância do livro reside, entre outros fatos, em observar
as profundas mudanças acontecidas em Rimbaud por meio de
suas próprias palavras e percepções. As cartas
desfazem, assim, boa parte de toda a mística frouxa que acompanha
seu nome.
Além das cartas escritas por Rimbaud,
é possível conferir toda a troca de correspondência
entre ele e Verlaine (no capítulo “Intermezzo verlainiano”),
mais os chamados “Depoimentos de Bruxelas”, relativos
ao processo criminal decorrente do célebre episódio
ocorrido em julho de 1873: Verlaine atirou contra Rimbaud, que foi
atingido no pulso. O relacionamento tempestuoso dos dois foi adaptado
para o cinema pela diretora Agnieska Holland no filme Eclipse
de uma paixão, estrelado por Leonardo DiCaprio.
Identificada como a primeira obra literária
de Rimbaud, uma composição em versos latinos –
hoje perdida – foi enviada aos 14 anos ao príncipe
Louis (12 anos à época) por conta de sua primeira
comunhão. A largada da Correspondência realiza-se
justamente com o relato de Édouard Jolly, estudante de filosofia
contemporâneo do escritor; “... acaba de enviar uma
carta de 60 versos latinos ao jovem Infante príncipe imperial
a propósito de sua primeira comunhão. Ele mantinha
isso dentro do maior segredo e não mostrou esses versos nem
mesmo ao professor; daí ter cometido alguns barbarismos condimentados
com alguns versos mancos”.
Aos 15 anos, Rimbaud conhece Georges Izambard.
O novo professor de retórica de sua provinciana cidade, Charleville,
reconhece nele uma invulgar vocação poética,
tornando-se seu amigo, confidente e fonte de empréstimo de
um considerável número de livros. Em agosto de 1870,
Izambard viaja, deixando sua biblioteca à disposição
do jovem poeta. Em carta do dia 25 deste mês, Arthur reporta-lhe
o tédio que tem sentido, e diz ter-se valido de grande parte
dos livros do amigo, inclusive do Quixote de Cervantes; “ontem,
passei em revista por duas horas as gravuras de Doré: agora
não tenho mais nada!”.
Carta do vidente
Menos de um ano depois, em maio de 1871, Rimbaud
(com 16 anos) envia a um amigo de Izambard, Paul Demeny, sua carta
mais conhecida, a Lettre du Voyant: Carta do vidente. Um dos elementos
fundamentais do esclarecimento de seu gênio e de suas teorias
poéticas, esta carta insinua-se como um ensaio sobre a evolução
da poesia francesa, sobre os novos pensamentos e atitudes do poeta
(“o racional desregramento de todos os sentidos”) e
estampa quase uma coletânea de máximas do escritor
(é daqui que surge a famosa “Eu é um outro”).
Em setembro do mesmo ano, ele deixará
Charleville rumo a Paris para conhecer Paul Verlaine, àquela
época o poeta mais importante da França. Às
vésperas da partida, escreve Le Bateau Ivre (O barco
ébrio), uma de suas obras-primas. As mudanças ocorridas
na vida de Rimbaud se sucedem em ritmo brusco e em curtos espaços
de tempo. Por meio de suas cartas, acompanhamos, em menos de uma
década, o iniciante poeta que pede conselhos tornar-se um
grande inovador da poesia — cônscio de seus métodos
e de seu ofício — para, logo em seguida, tornar-se
outro.
Como lembra o poeta e tradutor Dirceu Villa:
“Há ainda muitas coisas a mudar na leitura mais superficial
de Rimbaud. As cartas mostram, também, a via crúcis
de um poeta genial, na capital da poesia à época (Paris),
para receber alguma atenção. Isso não mudou.
Os grandes poetas vivem a mesmíssima coisa ainda hoje, embora
nossa época goste de pensar que essas injustiças são
todas do ‘passado’.”
Entrevista com Ivo Barroso
“Rimbaud abriu as portas do futuro”.
“O encontro de Rimbaud e Verlaine foi um acidente desagradável
para ambos”.
Como conheceu Rimbaud e decidiu dedicar-se
à tradução de sua obra completa?
Foi curioso. A história é longa e, se você não
se importar, vou contá-la toda...
Pode contar, é claro.
Por volta de 1954, nós tínhamos o suplemento literário
do Jornal do Brasil. Ele era dirigido pelo Reynaldo Jardim e lá
trabalhavam o Mário Faustino e o Ferreira Gullar. Eu acabei
entrando para equipe por conta de um soneto do Rilke que traduzi.
Um dia, vi numa antologia aquele soneto das vogais do Rimbaud. Eu
não conhecia nada dele a não ser aquilo (tinha lá
os meus 20 anos). Então levei pra eles uma tradução
minha do soneto das vogais. Mas, como muita gente já o havia
traduzido, pediram-me pra eu arrumar outra coisa. Eu, nessa altura,
estudava letras, e fui a uma livraria de livros em francês,
próxima à faculdade, e encontrei um livrinho do Rimbaud.
Era uma espécie de antologia com biografia, e abri aquilo
e fui dar em Une saison en enfer (Uma estadia no inferno,
na tradução de Ivo). Eu fiquei absolutamente alucinado.
Que coisa espantosa!
E depois?
Reynaldo Jardim me disse que o Ênio Silveira queria que ele
traduzisse a Saison, mas ele não tinha disposição
nem tempo pra isso. Propôs que eu a fizesse e eu disse: “Você
está doido, aquilo é muito difícil”.
(risos) Mas o Ênio me telefonou, insistiu, e eu topei fazer
a tradução. Ele publicou uma edição
feiíssima com uma cobra na capa (risos). A coisa formidável
é que acabei conhecendo Alceu Amoroso Lima (o Tristão
de Athayde), que era quem mais entendia de Rimbaud no país.
Levei pro Ênio e ele ficou de editar, isso foi no fim de 1972,
só saiu em 1977, o livro então ficou cozinhando na
gaveta da censura. Aí, depois desse primeiro impacto –
eu quase morri pra traduzir a Saison – eu quis ler
tudo do Rimbaud e fui me empolgando cada vez mais. Daí, botei
na cabeça que queria traduzir a poesia completa: era uma
missão, eu tinha que traduzir tudo que esse cara escreveu.
Todos consideram um dos maiores mistérios
da literatura o fato de Rimbaud ter abandonado a escrita. Isso não
seria apenas coerente com a personalidade dele? Uma vida cheia de
mudanças bruscas...
Ele foi o maior poeta. Tinha noção, certeza, consciência
de que havia atingido o máximo. Tanto assim que, ao estudar
a poesia dele, percebe-se que ele vai evoluindo de poema para poema,
até chegar nas Iluminações. E mesmo
nas Iluminações, em patamar altíssimo,
tem umas que são ainda mais altas do que as outras. E, com
o senso crítico que tinha, ele escreveu entre os 16 e 17
anos aquela carta do vidente, que é uma análise de
toda a literatura francesa; com o senso crítico que tinha,
ele deve ter pensado: “Além disso eu não vou,
nem eu, nem a poesia; não tem mais aonde ir”.
Então você acha que o abandono
foi muito mais pela consciência de já ter dado o máximo?
O abandono da poesia dele foi consciente. Ele tinha certeza de que
não podia ir além. Tinha chegado ao topo. Se ele continuasse,
iria se repetir e não abriria mais nenhuma porta. Ele abriu
a porta da poesia moderna: nas Iluminações
há os primeiros poemas em versos livres. Então, ele
já abriu as portas do futuro.
Falando em verso livre, na Carta do vidente
Rimbaud diz que Baudelaire é “um verdadeiro deus”.
Podemos dizer que os Pequenos poemas em prosa de Baudelaire pariram
Uma estadia no inferno?
Rimbaud foi muito mais além. Ele achava o Baudelaire um verdadeiro
deus dentro da literatura francesa, só que ele usava uma
linguagem que não era moderna. Rimbaud achava que a ideia
do Baudelaire era extraordinária, mas estava sendo expressa
por uma língua que ainda não era a língua poética
com que Rimbaud sonhava. Então ele deu o grande salto. E
fez coisas absolutamente modernas e altamente poéticas com
as Iluminações. Ali, para mim, é o máximo
dos máximos.
E quanto ao encontro entre Rimbaud e Verlaine,
como foi a influência poética?
Rimbaud tentou, como ele várias vezes fala, transformar o
Verlaine num filho do sol. Isso quer dizer: iluminá-lo no
sentido de torná-lo capaz de fazer uma poesia tão
de vanguarda e tão avançada quanto a dele. Não
conseguiu, de jeito nenhum. Os livros posteriores, até a
velhice, são livros que não têm nenhum valor
comparados com a primeira parte da poesia dele. E o Rimbaud não
pegou nada da melodia da poesia do Verlaine porque já tinha
a sua melodia própria. As canções finais, que
alguns acham até que são canções religiosas,
são melódicas, mas é de uma melodia extremamente
moderna, não tem nada a ver com aquele pieguismo sonoro do
Verlaine. Não há nenhuma influência de um sobre
o outro. O encontro foi um acidente desagradável na vida
dos dois. Porque o Verlaine poderia ter tido uma carreira muito
mais realizada do ponto de vista da poética, e o Rimbaud
poderia hoje ser muito mais lido na sua obra do que essa coisa boba
das novas gerações de ficarem preocupadas com a biografia
dele.
Você já traduziu Blake, Malraux,
Breton, Hesse, Strindberg, Svevo, Calvino e tudo de Rimbaud... E
agora?
Agora, acabou. Igual ao Rimbaud, que chegou aos 21 anos e falou:
“Não tenho mais nada pra fazer”. Eu cheguei à
idade dos 80. Também não tenho mais nada para fazer.
A missão de tradutor está completa?
Eu espero que sim. Mas sabe como é… a gente é
sensível a seduções. Se o editor miserável
chegar e disser: “mas você não traduziu fulano
de tal...”, eu sou capaz de quebrar o compromisso comigo mesmo
de encerrar (risos).
FOTOS E DESENHOS
A edição bilíngue da Poesia completa
de Rimbaud (Topbooks) foi lançada no Brasil pela primeira
vez em 1994. Dez anos depois, por ocasião dos 150 anos de
nascimento do poeta, ganhou nova edição. A Prosa
poética de Rimbaud, por sua vez, foi lançada pela
mesma Topbooks em 1998, e rendeu a Ivo Barroso o Prêmio Jabuti
de melhor tradução do ano. Agora, em Correspondência,
estão incluídas 28 ilustrações, entre
elas fotografias feitas pelo próprio Rimbaud na África,
além de desenhos feitos por ele, por sua irmã Isabelle
e por Paul Verlaine.
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