COSMOLOGIA IRÔNICA
Manuel da Costa Pinto
Na capa de Como Deixei de Ser Deus, de
Pedro Maciel, aparece a indicação de que temos em
mãos um romance. Quem o folheia, porém, encontra algo
que não condiz com a definição: uma sucessão
de parágrafos numerados, compostos por duas ou três
orações, alternando frases em letra regular, em itálico
e em negrito. Esses realces gráficos, por sua vez, parecem
indicar que as vozes ali presentes podem ser do próprio autor
ou citações de fontes diversas, todas em torno de
temas como tempo, memória, esquecimento e Deus.
Ou deuses, na perspectiva desse livro que parece
narrar o declínio da ideia de uma perfeição
ontológica (Deus como único ser que é causa
de si mesmo) em benefício de um panteísmo cético,
que suspende a fé em nossas representações
na mesma medida em que se vê atado a elas como o demiurgo
às suas criaturas: "O que me faz rir não são
as nossas loucuras; são os nossos saberes" e "Cada
um forja um deus para si", dizem dois fragmentos (o primeiro
extraído de Montaigne, o segundo de Pascal) que sintetizam
o teor filosófico do livro. Reduzir a leitura de Como
Deixei de Ser Deus à sua temática ou ao divertido
trabalho de detectar as fontes utilizadas, porém, põe
a perder os enigmas propostos pela estrutura da obra.
O "romance" nos convida a reconhecer
algumas das características consagradas pelo mais inclassificável
dos gêneros literários: narrador, personagens, ação,
coordenadas reais ou imaginárias etc. Mesmo quando subvertidas,
tais categorias latejam como o "common core" de
que fala o linguista de certas regularidades que fazem a arte da
palavra.
As vozes criadas por Maciel, porém, parecem
demasiado filosóficas ou eruditas; mesmo quando o tom é
zombeteiro ("no inverno sou budista e no verão sou nudista"),
a feição geral é de um florilégio de
citações e aforismos. Não fosse por um detalhe
fundamental: muitos dos trechos citados começam de maneira
truncada, como numa fala entrecortada, e a numeração
dos fragmentos é descontínua, vai saltando até
culminar no 2.046, que no início fora anunciado, mas tópico,
como o da morte do "narrador" ("Eu morri em 2046").
Enfim, é como se Pedro Maciel tivesse
salvado do desastre do tempo esboços de cenas e personagens
que deveriam compor um grande romance cosmológico. E é
como se o inacabamento fizesse jus a essa cosmologia irônica,
à maneira do "Monsieur Teste" de Paul Valéry,
menos tentada pelos grandes sistemas do que atenta às verdades
parciais descobertas pela mesma inteligência que um dia criou
a ficção de Deus.
Rodapé Literário
FOLHA DE S.PAULO
31/10/2009
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