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A DITA DO DESDITO

Marcos Pasche*

Após quinze anos da publicação de seu último livro de poemas – Todos os ventos, de 2002 –, Antonio Carlos Secchin está de volta à poesia com Desdizer. A exemplo da edição do título anterior, a do de agora congrega um volume de textos inéditos e os volumes poéticos anteriores – o já citado Todos os ventos e mais Diga-se de passagem (1988), Elementos (1983) e Ária de estação (1973). O livro também traz o depoimento “Escutas e escritas”, com o qual Secchin mapeia seu percurso pelas vias do verso. Por se evocar no depoimento a imagem do poeta como um “operário do precário” (p.195), tomada ao “Poema do infante” (p. 190), do livro de estreia, aqui pautarei os comentários sobre Desdizer pela exploração da imagem, buscando demonstrar que precariedades se operam, e como se operam, na poética em questão.

A primeira precariedade estampada no livro é a do próprio dizer. Abrindo o conjunto dos trinta e um poemas, “Na antessala” relata algum Antonio Carlos Secchin buscando expressão poética própria e potente, num movimento afunilado e frustrante. Da rua para um mosteiro e do mosteiro para uma gaveta, o poeta que se procura só se encontra como não do cânone moderno: não vale um Pessoa; não recebe o talento de Drummond; e seus versos, rasteiros, não se equiparam aos de Cecília Meireles. Pede-se ao leitor, portanto, que não alimente grandes expectativas.

Além de texto inaugural, “Na antessala” é grafado em itálico, apondo-se como epígrafe de um livro sem epígrafe propriamente dita. O detalhe gráfico também caracteriza “Poema-saída”, que fecha o volume e faz explícita referência ao primeiro. Ambos os textos desenvolvem-se em quatro quadras, e ambos possuem metro aproximado (oito sílabas o primeiro e sete o último), sendo os únicos do conjunto em que o eu se identifica na pessoa do autor e o receptor é identificado como o leitor específico de sua poesia, com acentuado grau de metadiscursividade. Considere-se ainda que eles ocupam posições-limite no território do livro (início e fim), e ei-los claramente familiarizados. As semelhanças, porém, não excluem alterações: noutro tom de interlocução, o desfecho responsabiliza o leitor (incapaz de reparar sutilezas) por seu fastio, quando o poeta abandona o lamento autodepreciativo para afirmar com lucidez: “Sei apenas que escrever/ nunca me apontou saída./ Mas ainda assim é nisso/ que apostei a minha vida” (p. 57). Análogos e variados, os dois poemas podem ser lidos como verso e reverso de um mesmo texto, porque, estruturados pela percepção irônica do real, do poético e do próprio sujeito e do outro, eles atuam como dizer e desdizer simultâneos, algo que ilustra muito do livro e da linguagem poética de Antonio Carlos Secchin.

Cabe sublinhar que a rarefação do dizer poético aparece em Desdizer também como forma ditada pelo contingente, o que na poética secchiniana, de frequentes sofisticação e rigor formal, é uma novidade. “Instruções” (p. 24), “Soneto da boa vizinhança” (p. 49) e “Soneto da boa vizinhança II” (p. 50) elaboram-se a partir de um modus operandi afim de procedimentos como o centenário ready-made, de Marcel Duchamp, e como o arranjo poético, de Alberto Pucheu, interlocutor de Secchin. O poeta, leitor e inventor de linguagem, é também seu auditor, e nos textos mencionados dispõem-se falas ante as quais aquele que as ouve age para organizá-las, instaurando forma (de soneto, inclusive) no caos. Secchin, poeta de Elementos (“O real é miragem consentida”, p. 131) e íntimo da tradição (cf. “Cisne”, p. 66, e “Trio”, p. 70, ambos de Todos os ventos), tem em Desdizer seu livro mais contemporâneo e concreto, por aberto à carne crua e à poeira do tempo: “O camarão custa os olhos da cara./ Frequento o Zona Sul, porém sou fã/ das grandes promoções do Guanabara” (“Soneto da boa vizinhança”, p. 49).

Em Desdizer, a precariedade do existir é verbalizada por uma confluência de pessimismo e estoicismo. Seja revendo a si próprio quando enxerga em objetos externos a derrota de suas esperanças (“A gaveta”, pp. 18-9), seja listando a aniquilação de sonhos alheios (“Feliz ano novo”, p. 22), há um eu que espia e se espia para anunciar – sem margem para otimismo retórico ou autopiedade – a inexorabilidade do que se revela como vida real e de revés. Dessa vertente, “Soneto da dissipação” é cortante exemplo: “Revejo a luz gelada de manhãs perdidas/ e os sonhos que eu mandei para o endereço errado./ Tanto azul me nauseia e nada se dissipa/ em meio ao mangue seco onde estanquei meu barco./ (...)/ O espelho só me ensina a ruína do desejo./ Sei que é meu esse olhar em que eu não mais me vejo” (p. 55).

Mas de um livro assinalado pela desdição, pode-se esperar o constante reverso do dito, e esta expectativa não é frustrada pelo correr das páginas. Os que acompanham o trabalho artístico e ensaístico de Antonio Carlos Secchin poderão perceber o caráter antinormativo de sua postura, caráter este decorrente mais de um espírito lúcido e aberto do que de levantamento de bandeiras. Coabitam o mesmo espaço da obra em estudo o verso uniforme e o variado, o olhar para o universo cósmico e para o botequim da favela, o metadiscurso e a referência social, a ambiência coletiva e a familiar, a amargura e o riso. Assim, poemas da grave precariedade ladeiam poemas solares, o que não significa dar a entender que o sol não brilha para os precários, pois, se fosse esta uma crença emitida pelo livro, ele cairia na dicotomia previsível e simplificadora há muito questionada pelo autor.

A poética de Antonio Carlos Secchin também pode ser entendida como apontamento para “o lado além do outro lado”, conforme se inscreve em epígrafe ao poema “Translado” (única epígrafe no livro, aliás, em que o poeta toma a palavra a si mesmo, e não a outrem). Como exemplo mais pujante da convergência de precariedade e vitalidade, cito “O galo gago”, poema cômico e narrativo que valeria como edição exclusiva também voltada para o público infantojuvenil. No relato, formula-se um impasse espantoso: a gagueira do galo o impede de cantar, o que inviabiliza o descanso da Noite e a consequente aparição do Sol. A forma humorística dominante e repleta de tiradas de superlativa criatividade – “Nada de periquito/ para cantar ao Sol!/ Bastava ensinar ao papagaio/ o canto em cocoricó bemol.” (p. 33) – não se isenta de apresentar fundos questionamentos, típicos da palavra mítica: “Toda a mata matutou:/ se a Noite vai e o Sol não vem,/ qual seria a cor de um céu/ habitado por ninguém?” (p. 32). A insuficiência canora do galo desencadeou um esforço coletivo para a garantia da manhã, saudada por enorme conjunto de bichos e até pelo poeta, que, sem ter tido participação alguma nos trabalhos, foi justamente convidado a retirar-se da ópera para cantar noutro poema.

Por fim, cito “Autorretrato”, poema central para o livro e um de seus maiores feitos. O título leva a supor um texto centrado no eu do discurso, mas a todo tempo esse eu fala de um ele, um poeta qualquer que ignora seu próprio fazer, sendo também ignorado, por esquivo e fugidio. A ideia de um retrato que retrata de soslaio, e que não consegue paralisar o movimento de alguém que não se apresenta fixamente, é também confirmação de alguém que opera o precário e que opera precariamente. Sendo o poeta um ser da palavra, poder-se-ia esperar ou exigir dele a sentença definitiva que apresente caminhos a serem seguidos e passos a serem dados. Só que a necessidade de certeza é já desautorizada pelo próprio operário, que “nunca sabe onde sua voz termina” (p. 39), “se o outro é que lhe invade,/numa voragem assassina” (ibidem), e que não sabe do motor que o impele “contra a crosta da rotina” (ibidem). E ali, onde tudo é dúvida, assoma um saber, desconfiado e conflitante, posto a desdizer a convenção e também aquele que dela se distingue, pois “Sabe que nasce do escuro/ a poesia que o ilumina” (ibidem).

* Marcos Pasche é crítico literário e professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro [marcospasche@uol.com.br ]

Publicado na revista Estudos Avançados, da USP, em outubro de 2017.

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