UM POETA VERSÁTIL
Cordialidade e diálogo são características de Antonio Carlos Secchin
Wagner Schadek*
Ítalo Calvino alertara para os perigos da leitura da Odisseia. No périplo do leitor, além de escolhos há diversas odisseias na Odisseia. No coração do texto homérico, é o próprio herói que, choroso por ouvir Demódoco cantar suas aventuras, revela-nos suas desditas. No entanto, como herói polítropo (de várias formas, multifacetado, versátil, astucioso), não deveríamos desconfiar desse relato? Talvez essa mudança de voz – da voz do narrador épico para a de Odisseu – justifique a censura de Platão: se o herói astucioso mente até mesmo para Atena, sua mentora, a deusa que o transformara em mendigo, por que não mentiria em sua narrativa?
Se o desenho da Odisseia é fractal, com partes reproduzindo o todo, é curioso também que sua esposa, Penélope, apresente essas mesmas características. O leitor deve se lembrar da famosa proposta de escolher um pretendente, ao terminar de tecer a mortalha do marido. O que era tecido pela manhã, no entanto, era descosido à noite. Somos enganados pelo enredo homérico da mesma forma como Penélope ludibria os pretendentes.
Em outro momento, após a chacina destes, o reconhecimento entre o casal se dá no nível intelectual: o posicionamento e o feitio da alcova. Tal prova do reconhecimento, não somente confirma a fidelidade da esposa, como também é um elemento de identificação amorosa: Odisseu e Penélope são semelhantes – até nas artimanhas!
Autores com a mesma astúcia e versatilidade são Ariosto, Rabelais, Cervantes, Heine, Machado de Assis…
Dessa estirpe politrópica é a poesia de Antonio Carlos Secchin, a confirmar-se agora com Desdizer, segunda reunião de obra poética, depois de Todos os ventos, de 2002.
Como primeira parte do livro, Desdizer engloba seus poemas inéditos. Ela é composta por um prólogo, “Na antessala”, que recepciona o leitor, “dez sonetos desconcertados” e um epílogo não menos curioso – “Poema-saída”.
Como acontecera com a primeira reunião, Desdizer não apresenta uma configuração cronológica; antes a poesia inédita e mais recente, e os livros anteriores seguem a ordem inversa: Todos os ventos (1997-2002), Aforismos (1991-1999), Diga-se de passagem (1983-1988), Elementos (1974-1983), Dispersos (1974-1982) e Ária de Estação (1969-1973). Propositalmente, esse arranjo justifica-se ao título e à poética de Secchin.
O poeta estreara com uma poesia altamente concentrada e sofisticada. É uma “poésie pure“, por vezes hermética – hermética no estilo, não na expressão, sempre límpida.
Com Ária de Estação, o poeta, como “operário do precário”, aproxima-se do “operário de sonhos” de Quasímodo.
É a noite.
E tudo escava tudo
na língua ambígua que desliza
para o esquivo jogo.
Amargo corpo,
que de mim a mim se furta,
não recuso teu percurso
no hálito das pedras
que me existem em ti
– estéril dordo entre águas
estancadas.
O nada, o perto, o pouco,
não posso dividir
do que se espera o que me habita,
ao fazer fluir a via antiga
de um menino que mediu o lado impuro.
Operário do precário,
me limito nesse corpo amanhecido,
asa e gozo onde a morte mora.
Minha vida, mapeada e descumprida,
está pronta para o preço dessa hora.
No entanto, em Dispersos já encontramos uma face diversa, a satirizar a metapoesia, bastante praticada à época, como nos sonetos “Linguagens”, onde o poeta joga com o cultismo barroco, e “Soneto das Luzes”, onde ele brinca com árcades e parnasianos.
Outra face encontramos em Elementos. Com poemas de evocação fenomenológica, as partes Ar, Fogo, Terra e Água, fecham-se numa unidade impressionante. Em Diga-se de Passagem, notamos o retorno do diálogo com outros poetas, como no terrível “Sete anos de pastor”. E em Aforismos, máximas desentranhadas de sua ensaística, encontramos verdadeiras joias, como no seguinte paradoxo:
Negar o grandioso é insuficiente para impedir seu enviesado retorno através da monumentalização do mínimo.
Mas é em Todos os ventos que surgem aspectos do cotidiano, como nos poemas “Noturno” e “Paisagem”, e uma autobiografia, como em “Confessionário”, em “Reunião” e “Autoria”, poema este em que o poeta se faz à medida que faz o poema. Convém ainda destacar nele os admiráveis “Dez sonetos da circunstância”, em que notamos a memória, fonte de toda a poesia:
De chumbo eram somente dez soldados,
plantados entre a Pérsia e o sono fundo,
e com certeza o espaço dessa mesa
era maior que o diâmetro do mundo.
Carícia de montanhas matutinas
com degraus desenhados pelo vento;
mas na lisa planície da alegria
corre o rio feroz do esquecimento.
Meninos e manhãs, densas lembranças
que o tempo contamina até o osso,
fazendo da memória um balde cego
vazando no negrume do meu poço.
Pouco a pouco vão sendo derrubados
as manhãs, os meninos e os soldados.
No entanto, mantém-se ainda nesse livro o diálogo com outros poetas, como no belo soneto “Cisne”, dedicado a Cruz e Sousa, cujos últimos versos são:
Negro cisne sangrando em frente a um poço.
Do alto, um deus cruel cospe em teu rosto.
Todos esses são exemplos de “Antes” que será desdito ou reafirmado neste Desdizer. O poeta versátil, astucioso, multifacetado mistura a forma do “rimance”, poema de uso narrativo, com o conteúdo, ao mesmo tempo, cotidiano ou crônico e alegórico, com em “A gaveta”, ou na emocionante “Carta aos pais”, poema de homenagem por suas bodas de diamante.
O diálogo com os poetas reaparece com “Vinícius revisitado” e “O galo gago”, este com um aceno a Cabral.
Mas neste livro destaca-se sobretudo o humor, como no delicioso:
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Com algo de humor negro, o poeta satiriza a artificialidade das relações humanas modernas. Não se trata de uma sátira gratuita; cordialidade e diálogo são características de Antonio Carlos Secchin. Boa parte dos poemas recebe dedicatória, embora para este projeto os nomes de escritores e amigos tenham ficado em seção especial. Além disso, o poeta já criticara, no poema “Colóquio”, o comportamento de muito poetas que viram as costas aos leitores, fechando-se em agremiações ou “igrejinhas”, como diria Dalton Trevisan.
E assim como o Vampiro de Curitiba, nos sonetos de “Boa vizinhança…”, Secchin tem como matéria o cotidiano e a expressão popular:
SONETO DE BOA VIZINHANÇA II
Se quiser, vai lá em casa pra assistir o jogo.
A Claudete eu não pego de jeito nenhum.
Esse rapaz, não boto minha mão no fogo.
A coisa rola solta lá no 101.
Perdi dois quilos com a dieta do elefante.
Ah, se o Mengão ganhar, aí é que eu me acabo.
O flagra aconteceu na esquina da Constante.
Farofa? Sim, mas não dispenso orelha e rabo.
Tacaram pedra na Brasília da Janete,
me disseram que foi vingança do Batista.
Sabia que Suely vendeu a quitinete
e a Marinês fugiu com a filha do dentista?
Eu não invejo o morador da cobertura,
o sol da tarde deve ser uma tortura.
Embora carregue elementos contingentes que possam vir a perder significação com o passar do tempo, é esse fundo moral (a busca pelo Verdadeiro, o Justo e o Belo) que garante à sátira sua universalidade. Em tempos de politização, a sátira tem servido aos agitadores como panfletagem e proselitismo político. Contudo, circunscrita ao relativismo moral, eis a fatuidade e irrelevância da sátira política, ensimesmada, ornamental e dogmática. E ao contrário disso, plena da vida, a grande sátira que lemos neste Desdizer encontra no coração da precariedade humana a verdade do ser.
Falamos acima da geometria fractal cujas partes grosso modo reproduzem o todo. Neste livro em geral, e neste soneto em particular, tecnicamente, convém notar que os oito primeiros versos, cada qual concentrado e recortado em sua medida precisa, algo aliás recorrente no estilo secchiniano, representa um enunciado de episódios os mais diversos. O leitor tem a impressão de conversas de bar ou de elevador.
E diferente da altivez parnasiana do Beneditino bilaquiniano, é exatamente no “turbilhão da rua”, como Drummond, que Secchin, poeta versátil de diversas formas, colhe a flor de sua poesia.
* Tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.
Publicado em setembro de 2017 na revista Amálgama (www.revistaamalgama.com.br)
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