DOM JOÃO VI NO BRASIL
Nívia Pombo
Volta
às livrarias um dos maiores clássicos da historiografia
brasileira: D. João VI no Brasil, de Oliveira Lima. Antecipando
as comemorações pelos duzentos anos da chegada da
família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, o livro
ganha uma nova capa e prefácio do crítico Wilson Martins.
Publicado pela primeira vez em 1908, quando o Brasil - uma república
recém-nascida - ainda tropeçava nas raízes
da nacionalidade, Oliveira Lima traz de volta à memória
dos intelectuais brasileiros a tradição lusitana,
que o romantismo tentou, no século XIX, sepultar.
Portanto, mais do que uma biografia de um rei
gorducho e caricato, a obra é o retrato de uma época:
o período joanino (1808-1821), momento-chave da nossa emancipação
política. Oliveira Lima foi o primeiro a defender esta tese,
hoje tão reivindicada pelos historiadores que trabalham o
período. Neste curto espaço de tempo, d. João
implantou na colônia as bases para o nascimento de uma nação,
calcado no projeto de império luso-brasileiro, concebido
pelo ministro d. Rodrigo de Souza Coutinho (1756-1812). Para comprovar
seus argumentos, o historiador e diplomata pernambucano consultou
incontáveis documentos, naquela época inéditos,
de arquivos europeus, brasileiros e, até mesmo, norte-americanos.
Ao longo dos trinta capítulos que compõem a obra -
escritos com apuro e com um gosto particular em narrar detalhes
das intrigas palacianas -, Oliveira Lima aposta no peso das relações
diplomáticas como principal chave de compreensão da
política joanina. Com a Grã- Bretanha, as duras negociações
em torno da abertura dos portos (1808) e, posteriormente, o tratado
de 1810. Com a França napoleônica, a delicada questão
dos limites, na região da Guiana. Com a Espanha, as pretensões
da rainha Carlota Joaquina em se apoderar dos Domínios hispânicos
na América. Entremeando essas discussões, capítulos
pitorescos sobre o cotidiano dos habitantes do Rio de Janeiro, solenidades
da corte, tráfico de escravos, entre outros, que de certo
modo antecipam uma linguagem que será utilizada por Gilberto
Freyre em clássicos como Casa-grande & senzala.
Destaca-se o capítulo dedicado a Carlota Joaquina, com quem
Oliveira Lima não disfarça sua implicância,
considerando-a "o maior estorvo da vida de d. João VI".
Quase cem anos depois de sua primeira edição, a obra
continua sendo a principal análise do período.
revista NOSSA HISTÓRIA
01/11/2006
Publicado na Revista de História
da Biblioteca Nacional, nº 28, janeiro de 2008
CLÁSSICOS
Para início de conversa
A
República ainda andava às turras com os monarquistas
em 1908 quando, no centenário da chegada da Corte Portuguesa
ao Rio de Janeiro, o historiador e diplomata pernambucano Manuel
de Oliveira Lima (1867-1928) publicou, pela primeira vez, D. João
VI no Brasil (4ª edição, Topbooks, 2006, R$ 69,00).
Considerado um clássico da historiografia brasileira, o livro
completa 100 anos e permanece como o mais importante estudo sobre
o período joanino.
Empenhado em desfazer a imagem de um rei desleixado,
Oliveira Lima revelou um monarca complexo, marcado por uma personalidade
indecisa, mas sensível aos seus deveres políticos
de estadista. Consultando uma copiosa documentação
diplomática, o autor descobriu que os planos de transferência
de família real para o Brasil eram anteriores a 1807, e empurrou
para escanteio a imagem caricata de “fuga”, defendendo
a originalidade da decisão portuguesa.
Com uma narrativa envolvente, a obra por vezes
parece um longo romance, ambientado num Rio de Janeiro cheio de
vida, com dias ensolarados, colorido pelos festejos e pela alegria
ruidosa dos seus habitantes. Os personagens também ganharam
contornos mais humanos: a rainha Carlota Joaquina, grande vilã
do livro, vivia a tramar contra o bondoso D. João. Ministros
e funcionários régios, todos têm seus segredos
e interesses políticos revelados, em momento extremamente
tenso da História do Brasil e de Portugal.
Publicado
no blog de Adelto Gonçalves em março de 2008:
www.blog.comunidades.net/adelto
HISTÓRIA
Dom João VI revisitado
Adelto Gonçalves*
No começo deste 2008, várias exposições
em museus, arquivos e até shopping-centers comemoraram os
200 anos da abertura dos portos do Brasil às nações
amigas. E o fizeram muito bem. Mas os organizadores esqueceram de
avisar aos estudantes, e a todos aqueles que se interessaram pelas
exposições, que essas nações amigas
a que o príncipe regente D. João (1767-1826) se referia
em seu decreto não passavam de um subterfúgio, um
eufemismo, porque o que ele fizera fora mesmo franquear os portos
brasileiros à Inglaterra.
Até porque, naquele ano, esse era o único
Estado da Europa capaz de fazer frente ao poder de Napoleão
Bonaparte (1769-1821), o corso francês que tinha todo o continente
sob seu jugo como aliado ou protetorado. Afinal de contas, a Inglaterra,
com sua possante marinha de guerra, protegera a saída estratégica
da família real portuguesa de Lisboa rumo ao vice-reino do
Brasil.
A rigor, nos anos de 1808 a 1814 os portos do
Brasil não estiveram abertos a nenhuma nação
amiga, exceto à Inglaterra, que manteve verdadeiro monopólio
mercantil sobre as terras lusas na América. E mesmo quando,
em 1814, saiu um decreto que abolia certos privilégios aos
comerciantes ingleses, a Inglaterra já estava armada com
um vantajoso tratado comercial de 1810, e ocupara tantas posições
estratégicas no mercado que, por muitos anos, continuaria
a usufruir das inúmeras vantagens de um status de monopólio.
Com isso, os Braganças pagavam com juros e mais juros o favor
inglês que lhes permitiria uma sobrevida de mais de 80 anos
no Novo Continente.
Quem quiser saber em detalhes o que foi esse
tratado leonino, tão hostil aos interesses de Portugal e
do Brasil, deve ler D.João VI no Brasil, de Oliveira Lima
(1867-1928), que, lançado em 1908, ganhou em 2006 a sua quarta
edição. Trata-se de um clássico da historiografia
brasileira, bem documentado com pesquisas de arquivos, que se tornou
modelo para estudos biográficos de monarcas brasileiros,
e que ainda hoje constitui um paradigma para aqueles que se aventuram
no ofício de historiador.
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Pouco lida, esta obra monumental, ao longo de
100 anos, havia sido reeditada apenas em 1945, e depois só
em 1996 pela Topbooks, e não teve força para derrubar
o mito segundo o qual D. João era um príncipe medroso
e bobão – imagem que o historiador Oliveira Martins
(1845-1894) pôs a andar, e que ainda hoje só historiadores
nada sérios ainda fazem questão de repetir, talvez
no afã de conquistar leitores mais facilmente.
Oliveira Lima também contestou a imagem
caricata da “fuga” da família real, e provou,
com documentação, que os planos de transferência
da corte eram anteriores a 1807, fazendo assim a defesa da opção
portuguesa numa altura em que nenhum monarca europeu imaginaria
instalar-se no Novo Continente. E ainda mostrou os benefícios
que a presença da corte trouxe para o Rio, e para a emancipação
do Brasil como nação.
Para Oliveira Lima, o reinado brasileiro de D.João
foi o único período de imperialismo consciente que
registra a história brasileira, pois o avanço além
dos limites do Tratado de Tordesilhas por aventureiros paulistas
– só mais tarde chamados de bandeirantes – havia
se dado de maneira instintiva, sem que houvesse uma estratégia
planejada por parte do governo. Em resposta ao desaforo de Napoleão,
D.João, de maneira deliberada, anexou a Guiana Francesa –
de que, depois, Portugal abriria mão no Congresso de Viena
para reaver o perdido que era posse legítima e tradicional
– e a província Cisplatina, que o primeiro reinado
independente também teve de sacrificar.
Enfim, mostrou que D. João, embora epiléptico
e sofrendo de outros problemas de saúde, soube tomar as decisões
necessárias nos momentos difíceis, diante das circunstâncias
que as exíguas forças de seu reino permitiam. E que
nada se fez de afogadilho: até mesmo a anexação
da Guiana e da Cisplatina foi uma decisão que já havia
sido tomada em Lisboa, antes mesmo da saída da família
real, com a concordância inglesa.
Além de mostrar que o príncipe
regente soube se cercar de bons ministros, especialmente D. Rodrigo
de Sousa Coutinho (1755-1812), o conde de Linhares, o mais notável
de seus auxiliares, Oliveira Lima antecipou o que só livros
mais recentes da historiadora Francisca L. Nogueira de Azevedo –
Carlota Joaquina na corte do Brasil (Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2003) e Carlota Joaquina: cartas inéditas (Rio
de Janeiro, Editora Casa da Palavra, 2007) – confirmaram documentalmente:
o empenho da princesa na defesa da integridade dos domínios
espanhóis na América depois da deposição
dos Bourbons, o que também refaz a imagem caricata que a
propaganda republicana construiu da consorte de D.João.
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Oliveira Lima repete a informação
do irlandês Thomas O' Neill, oficial da marinha britânica,
testemunha ocular do embarque da comitiva de D. João em Lisboa
(e do desembarque no Rio de Janeiro), segundo a qual 15 mil pessoas
teriam acompanhado o príncipe regente em sua retirada. Mas,
em várias passagens, desqualifica O' Neill, ao considerá-lo
uma testemunha “não inteiramente digna de fé
desse acontecimento memorável”.
A exemplo de Oliveira Lima, muitos historiadores
têm repetido essa informação, mas nunca se preocuparam
em ir ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ) para conferir
o registro da entrada dessa gente. O livro de O' Neill, escrito
em 1810, acaba de ganhar nova edição: A vinda da família
real portuguesa para o Brasil (Rio de Janeiro, José Olympio,
2007).
Nireu Cavalcanti, autor de O Rio de Janeiro setecentista
(Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004) foi o único historiador,
até agora, que esteve no ANRJ para conferir essas listas.
Fez as contas e concluiu que o número de pessoas que desembarcaram
no Rio de Janeiro em 1808 e 1809 não passou de 444, “entre
as quais 60 membros da família real e da alta nobreza portuguesa,
que chegaram ao Rio de Janeiro nos dois anos em questão”.
Mas a maior parte dos historiadores ainda prefere se aferrar aos
números de O' Neill porque, afinal, é mais fácil
repetir o que já está impresso. E ninguém gosta
de admitir erros ou corrigir equívocos.
O curioso é que Oliveira Lima repete também
uma informação do britânico J. Luccock, que
consta de Notes on Rio de Janeiro and the southern parts of Brazil;
taken during a residence of ten years in that country from 1808
to 1818 (Londres, 1820) segundo a qual, por essa época, a
população do Rio de Janeiro contava com um milhar
de empregados públicos e outro milhar de dependentes da corte.
Portanto, onde estariam os 15 mil que teriam vindo em 1808, e que
seriam, na maioria, funcionários da monarquia?
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Em D. João VI no Brasil, Oliveira Lima
se refere, na página 233, a “um Carlos José
Guezzi”, que seria um dos “numerosos agentes confidenciais”
em Buenos Aires e Montevidéu de D. Rodrigo de Sousa Coutinho
(1755-1812), que sempre foi considerado maçom, embora tenha
negado a condição várias vezes. Mas, como se
percebe, o autor desconhecia quem era esse Guezzi.
Por isso, é bom que se acrescente que
Carlos José Guezzi (nome aportuguesado) era um médico
piemontês que foi físico-mor da capitania de Moçambique,
Rios de Sena e Sofala, e juiz da balança da alfândega
da Ilha de Moçambique, e que, já enriquecido com o
tráfico negreiro, partiu em 1803 rumo ao Reino, com a intenção
de, antes, negociar escravos no Cabo da Boa Esperança, Rio
de Janeiro e Montevidéu. Ao que parece, instalou-se no Cone
Sul, tornando-se informante de D. Rodrigo, provavelmente, em razão
de suas ligações maçônicas.
Em meio à briga política que tinha
por objetivo resguardar os direitos de D. Carlota Joaquina sobre
a América espanhola, numa época em que o rei da Espanha
fora apeado do poder por Napoleão, Guezzi foi preso em 1811
e remetido pelo governador de Buenos Aires para Cádiz, onde
a regência o mandou soltar depois que o ministro D. Pedro
Sousa Holstein (1781-1850) reclamou sua libertação.
Aliás, como Guezzi, Sousa Holstein (depois duque de Palmela)
nascera em Turim e, a esse tempo, era embaixador de D. João
em Madri.
Como curiosidade, pode-se dizer que Guezzi foi
quem, em 1800, comprou do poeta Tomás Antônio Gonzaga
(1744-1810), ex-ouvidor de Vila Rica – e desterrado em Moçambique
por sua participação na conjuração mineira
de 1789 – um palmar na Cabaceira Grande e não pagou,
o que fez com que o prejudicado recorresse à Justiça.
O palmar, na verdade, pertencera à avó materna de
Juliana de Sousa Mascarenhas, mulher de Gonzaga. A Guezzi o poeta
vendera também três escravos.
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Um grande traficante negreiro de Moçambique,
como Guezzi, foi Eleutério José Delfim, aquele que
teria levado a credencial da maçonaria carioca para que José
Joaquim da Maia e Barbalho (1757-1788), estudante em Montpellier,
atrás do pseudônimo Vendek, procurasse o embaixador
da América Setentrional em Paris, Thomas Jefferson, para
discutir um possível apoio daquela jovem nação
à luta pela independência de parte da América
portuguesa, que se articulava em Minas Gerais e no Rio de Janeiro.
Delfim matriculou-se em 1786 na Universidade de Montpellier, mas
deve ter retornado ao Rio de Janeiro, pois há o registro
de que embarcou na nau Conceição e São José
rumo a Lisboa a 8 de julho de 1788 (ANRJ, Avulsos do Rio de Janeiro,
caixa 141, doc. 61).
Em 1792, Delfim iria dar com os costados na Ilha
de Moçambique e, em 1797, receberia a carta-patente de tenente-coronel
do terço da infantaria auxiliar, cargo vago no ano de 1793
por morte de Alexandre Roberto Mascarenhas, sogro de Tomás
Antônio Gonzaga.
Filho do comerciante carioca Antônio Delfim
Silva, Eleutério seria bem recebido pela elite negreira da
capitania, especialmente por brasileiros que já haviam estabelecido
casas comerciais na ilha para negociar escravatura. Foi a partir
da chegada de Delfim, coincidência ou não, que teve
início em larga escala o tráfico de escravos da contra-costa
africana para o Rio de Janeiro e Montevidéu. Tudo controlado
pelo capital mercantil carioca, que se tornaria o principal sustentáculo
da monarquia lusa em solo brasileiro.
Já Francisco Álvaro da Silva Freire,
depois de perseguido em Portugal e no Rio de Janeiro, acusado de
maçom, em 1802, obteria proteção da elite negreira
de Moçambique e até um emprego no governo local. De
forma surpreendente, a partir de 1804, acabaria por se transformar
em agente secreto do príncipe regente em Paris, tal como
Guezzi em Buenos Aires.
Delfim e Silva Freire não aparecem no
livro de Oliveira Lima, mas por aqui se vê que há ainda
muitos fios soltos que precisam ser atados para que se tenha um
conhecimento mais aprofundado do que foi esse relacionamento dos
grandes traficantes negreiros de Moçambique, ao final do
século 18 e começo do 19, com os ministros do príncipe
regente, cuja aproximação se dava pela sociabilidade
maçônica.
D. JOÃO VI NO BRASIL, de Oliveira Lima,
4ª ed. / Rio de Janeiro: Topbooks, 790 págs., R$ 69,
2006.
* Adelto Gonçalves é doutor em
Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor
de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003).
leia mais:
D.
João VI visto além da caricatura
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