D. JOÃO VI VISTO ALÉM DA CARICATURA
Na obra de Oliveira Lima, um rei brando e sagaz,
afável e obstinado. E também gordo e ambíguo
como seu próprio biógrafo
Lilia Moritz Schwarcz
Muitos livros fazem "carreira solo"; outros, como D.
João VI no Brasil - um marco na historiografia nacional
e que agora ganha nova edição -, colam-se à
sina de seu autor: no caso, Oliveira Lima, um personagem de si próprio
e de sua obra.
Manuel
de Oliveira Lima sempre fez questão de associar sua carreira
de historiador ao fato de ser pernambucano. Afinal, foi no Recife
que recebeu de presente do tio desembargador uma coleção
da Revista do Instituto Arqueológico, Histórico
e Geográfico Pernambucano, e tomou gosto pela história.
Nascido em finais de 1867, o futuro membro e fundador da Academia
Brasileira de Letras seria educado em Lisboa, desde 1873, onde tomou
familiaridade com os diplomatas brasileiros que serviam em Portugal,
aprendendo a dominar as línguas francesa, inglesa e portuguesa.
Foi por lá, também, ao terminar o curso superior em
1887, que começou suas pesquisas históricas, aprofundadas
por uma longa - e pouco brilhante - carreira no serviço diplomático
brasileiro, que se iniciaria em 1890.
Oliveira Lima foi adido da legação
em Lisboa, promovido depois de um ano a secretário. De lá
rumou para Berlim, e em seguida para Washington, sempre na qualidade
de primeiro secretário. Depois se dirigiu para Londres, onde
conviveu com Eduardo Prado e Graça Aranha, assim como fez
parte do seleto grupo que jantava aos domingos na casa de Joaquim
Nabuco.
Conhecido pela alcunha de "o gordo",
devido a seu perfil físico avantajado, Oliveira Lima conviveu
com essa nata de brasileiros no exterior, mas romperia com vários
deles devido à sua personalidade: auto-irônico e de
pavio curto, o diplomata se tornou famoso por cortar relações
com seus superiores - como foi com Assis Brasil, que quase o desafiou
para um duelo, assim como com Joaquim Nabuco, com quem deixou de
falar após algumas críticas de parte a parte. Ao que
tudo indica, Nabuco preferia mesmo a bela e espirituosa Flora, esposa
de Oliveira Lima. Mas essa é outra história e o secretário
é obrigado a seguir para o Japão, e de lá,
em 1904, para a Venezuela, nomeação que em muito o
desgostou.
Nesse momento, a atividade literária de
Oliveira Lima já era intensa, e o futuro historiador preferiria
ter ficado mais perto de seus documentos, fosse na América,
fosse na velha Europa. Havia escrito a essa altura três livros
- Pernambuco, seu desenvolvimento histórico, Sete anos
de República e Aspectos da literatura colonial - e acrescentaria,
nesse seu exílio involuntário, mais outros: Memória
sobre o descobrimento do Brasil, História do reconhecimento
do Império, Elogio de F. A. Varnhagen, No Japão
[também no catálogo da editora Topbooks] e
Secretário Del-Rei, esse último uma peça
histórica.
Sua atividade também se estendia à
colaboração em jornais de Pernambuco e São
Paulo, o que resultaria em mais duas obras: Pan-americanismo
e Coisas diplomáticas. O fato é que Oliveira
Lima acomodava sua carreira diplomática oscilante à
sua profissão de historiador e servia-se de sua posição
estratégica para alicerçar sua pesquisa. Numa época
em que os tratados de história eram basicamente laudatórios
e pautados pela prática do auto-elogio e da reiteração,
Oliveira Lima levava à frente um projeto que implicava em
unir interpretação à documentação.
Serviria ainda em Bruxelas e cumulativamente
na Suécia, em 1907. Nesse momento, suas simpatias pela monarquia
eram não só evidentes como abertamente anunciadas,
e esse seria o motivo para que o senado brasileiro, em 1913, lhe
vedasse a indicação como chefe da legação
em Londres. Oliveira Lima também foi perseguido pelo então
poderoso ministro das Relações Exteriores, o Barão
do Rio Branco, que sempre o relegou aos corredores da Secretaria
de Estado. No entanto, o desprestígio lhe teria sido providencial,
uma vez que lhe facultou tempo para trabalhar no Arquivo Nacional,
na Biblioteca Nacional e no acervo do Itamaraty.
Foi em 1909, com a publicação de
D. João VI no Brasil, que Oliveira Lima elevou-se,
definitivamente, à condição de historiador.
Publicada em dois volumes, a obra se destacaria por conta da documentação
inédita e copiosa que apresentava, mas também por
seu recorte histórico, sociológico e cultural. Em
D. João VI no Brasil (Topbooks, 790 págs.,
R$ 69) Oliveira Lima não só acumulou dados, como os
interpretou e deu colorido à narrativa. Lá estão,
em detalhes, as procissões que encheram os olhos dos portugueses
quando da chegada da corte ao Rio, as festas de aclamação
de Dom João, as exéquias de Dona Maria e o casamento
do arruaceiro Dom Pedro. Flores espalhadas, areias coloridas nas
ruas, bandeirolas, gentes de todas as cores faziam dos trópicos
um contínuo verão; um "carnaval perpétuo".
Estão também descritos no livro os rituais do beija-mão,
os obeliscos, pirâmides e arcos do triunfo que deram ao Rio
de Janeiro um aspecto inesperado e até improvável.
As damas cobertas de pedraria e emplumadas, a música do gênio
nacional, o padre mulato José Maurício, tudo faz dessa
corte um espetáculo à parte, assim como a "liteira
mesquinha" da rainha, ou o séquito exótico de
D. João, o qual andava cercado de soldados de fardas azuis,
sujas e desbotadas, todos montados em cavalos mancos. O fato é
que, com tantos elementos, Oliveira Lima montava um cenário
nunca visto, sobretudo quando descrevia essa corte portuguesa, passageiramente
estacionada nos trópicos.
Mas esse é também um livro de opinião.
Oliveira Lima, em primeiro lugar, parece empenhado em desfazer a
imagem caricatural de um D. João bonachão, desleixado
e sempre a comer coxinhas de galinha. O historiador toma o partido
contrário e recupera os projetos de fuga da corte portuguesa,
ao mesmo tempo em que mostra como a monarquia dos Bragança
livrou-se da sina de uma série de realezas que, nesse contexto,
caíram sob as mãos de Napoleão. Os Bourbons
da Espanha e da Itália, o rei da Prússia, o monarca
austríaco, o próprio czar... todos haviam tombado
diante do "corso francês", enquanto D. João
seguia "impulsos do momento e fazia política só
de oportunismo". A saída portuguesa seria não
só original como estratégica. O Dom João de
Oliveira Lima é, porém, igualmente licencioso e capaz
de, só no ano de 1818, permitir no Paço o consumo
de 620 aves. E esse é apenas um exemplo da famosa prodigalidade
da Casa Real, que, alguns anos depois, levaria à falência
o próprio Banco do Brasil.
Segundo o diplomata, faltavam a D. João
resolução, cinismo e disciplina mental, mas lhe sobravam
a bonomia e a vontade de ficar no Brasil, apartado da guerra e de
sua esposa, Carlota Joaquina, que vivia em outro palácio,
sempre a conspirar e pensando em revoluções, na maior
parte das vezes contra o marido. E assim complexo o monarca que
transparece das páginas deste livro; personagem muito mais
ambígua do que a que ficou para a história, marcada
pela barriga farta. D. João era, também, e segundo
a pena do mesmo Oliveira Lima, um homem para teimas: "a firmeza
na aplicação não correspondia nele à
firmeza de opinião". O rei que assistira a tantas provocações
parecia satisfeito em "preservar a sua coroa ainda que mareada".
Como brinca Oliveira Lima, "o manto sobre os ombros parecia
decorativo, quando mesmo o arminho fosse falso e o veludo de algodão".
Há ainda outro argumento presente no conjunto
da obra e que se mostraria influente na historiografia nacional.
Oliveira Lima encontra uma espécie de continuidade entre
a vinda da corte e a nossa independência: uma monarquia cercada
de repúblicas por todos os lados. Trata-se de uma interpretação
marcada por uma lógica basicamente voltada para a centralidade
do Rio de Janeiro, e que pouca importância dá às
demais províncias, também atuantes nesse processo.
Por exemplo, ao tratar da elevação do Brasil a Reino
Unido, em 1815, Lima já mostra como as "conseqüências
desse estado de coisas eram fortuitas, mas imperiosas". Além
do mais, apesar de não apostar na lenda da administração
impecável dos tempos de D. João, ele não deixa
de asseverar que a transladação da corte constituiria
a única explicação para a "originalidade"
da nossa emancipação. Por sinal, o historiador usa
uma centena de páginas para descrever as melhorias militares,
administrativas, culturais e urbanas realizadas por D. João
- "um verdadeiro trabalho de aformoseamento"; sempre procurando
comprovar como nosso destino era não só previsível
como antecipado. O fato é que para Oliveira Lima Dom João
foi o verdadeiro fundador da América, aquele que, obrigado
a voltar para Portugal, em 1821, regressava menos rei do que chegara,
deixando um Brasil maior do que encontrara. A revolução
pernambucana de 1817 ou a rebelião liberal do Porto demonstravam
como os tempos eram outros e que a lua-de-mel no Brasil alcançara
o fim. Na última página deste livre que se lê
como um longo romance, D. João parte triste, receoso, lusco-fusco.
A rainha, ao contrário, segue delirante, feliz por ir de
encontro "à terra de gente".
Oliveira Lima seria combatido, à sua época,
por conta de seu monarquismo e dos contínuos ataques que
fez à carreira diplomática: seria um gauche sem ser.
Criticou a doutrina Monroe (quando essa fazia furor entre seus contemporâneos),
assim como defendeu a herança cultural européia diante
da americana, numa época em que a imaginação
política se voltava para os Estados Unidos. Por essas e por
outras, foi um político bastante isolado. Já a carreira
de seu livro teve vida longa e continua a ser referência para
todo aquele que pense nesse Brasil joanino, cuja história
logo mais fará 200 anos.
Oliveira Lima parece ter se identificado com
sua personagem, não só por conta da gordura, que lhes
era comum, como em função de sua inserção
ambivalente. D. João era, segundo seu biógrafo, brando
e sagaz, precavido e por vezes impulsivo, muito afável, mas
também obstinado. Nesse caso, criador e criatura parecem
fazer parte do mesmo retrato na parede.
LILIA MORITZ SCHWARCZ é professora do
Departamento de Antropologia da USP, e autora, entre outros, de
A longa viagem da biblioteca dos reis (Companhia das Letras).
caderno Cultura
O ESTADO DE S.PAULO
17/12/2006
Veja mais:
Dom
João VI no Brasil
|