ADRIANO ESPÍNOLA CONSTRÓI
ALEGORIA EM HOMENAGEM A CERVANTES
Ildásio Tavares
A história da arte e da literatura registra
não raro o surgimento, aqui e ali, de lugares ideais, utópicos,
a exemplo da Pasárgada, de Manuel Bandeira, onde “lá
sou amigo do rei”, ou da Maracangalha, de Dorival Caymmi,
para onde “vou com meu chapéu de palha”. E, agora,
no território da ficção, descortinamos a Malindrânia,
de Adriano Espínola, onde “se persegue o inatingível,
ou a beleza que o reflete”.
Malindrânia, a sonhada ilha, na qual o
gigante Caraculiambro é vencido pela imaginação
de dom Quixote, personagem arquetípico do romance ocidental,
aqui reaparece como “um lugar de lutas verbais, duelos e encantamentos”.
Jogando com um hábil entretecimento de realidade e sonho,
vida e ficção, o autor chega nesta narrativa-título
a construir uma muito bem urdida alegoria (e homenagem à
escritura), um monumento de metaliteratura, em que expressa, de
maneira fulcral, as implicações do real-real e do
real-imaginário através da obra básica de Cervantes.
Vale-se também de um fio tênue com o histórico,
representado pelo cineasta Lindberg Cariman, misto de gente e invenção,
e da amarra, em si literária, de Frei Luís de León,
ligando Malindrânia à Catedral Vieja, em Salamanca.
Já na primeira narrativa, “As cordas
do mar”, em que uma gigantesca tsunami invade o bairro de
Ipanema, Espínola surpreende com um clima em que absurdo
e surrealismo se misturam a uma percuciente crítica ao caos
urbano. Nas águas do mar e do tempo, o personagem sobrenada
o lixo circundante do Rio de Janeiro, sua desumanidade, sob o aspecto
vendável de um charme exuberante que o Brasil e o mundo engolem
de boca aberta até a próxima bala perdida.
Contos? Poemas em prosa? Crônicas? Difícil
rotular narrativas tão surpreendentemente inovadoras. Há
muito não se via algo tão novo, tão puro e
ao mesmo tempo tão complexo. A capacidade que tem o escritor
de viajar do coloquial para o caos urbano, do real aparente para
a fantasia é realmente extraordinária. O texto de
Adriano é de uma irritante originalidade, texto ao mesmo
tempo estribado na tradição e nos grandes temas; órfico,
por vezes.
Ao lê-lo, estamos em pleno reino da realidade
da ficção, em que a verossimilhança interna
é tão bem costurada que até nos choca quando
o autor retorna de chofre ao mais comezinho real, como na história
de abertura, em que os peixes e mariscos como fantasia se materializam
como peixes e mariscos trazidos da feira, em uma magistral interconexão
do real com o delírio. Com domínio absoluto desse
interregno, Espínola trabalha para coser uma suprarrealidade,
uma realidade várias vezes mais real porque deriva de uma
leitura ora aguda, ora irônica, ora mágica desta brutal
paisagem urbana do Rio de Janeiro.
Tudo isso é conseguido sem afetação,
sem literatice. A narrativa segue seu fluxo natural e prosseguimos
do aterrador ao espantoso, sem o estardalhaço da escritura,
sem pirotecnia. Com um admirável manejo da frase como verso,
com uma cadência e um ritmo que denunciam imediatamente que
há um poeta, o indiscutível poeta Adriano Espínola,
entretecendo uma teia de mentiras que nos iludem como verdades meridianas.
Nesse sentido, o autor retoma a função primordial
dos poetas antigos que era a de contar histórias, fabular,
criar mitos com o poder da palavra.
E isso acontece, por exemplo, na peça
“O xamã”, onde a dialética real versus
irreal se enriquece de aprofundamento místico. Aqui os processos
cíclicos do autor chegam ao ápice. A narrativa é
primorosa e, talvez, aquela em que a antítese cidade x campo
melhor se realiza. O emigrado, na sua iniciação xamânica,
não consegue mais voltar, porém consegue assestar
suas baterias metafóricas e desvendar mistérios, arrancar
as máscaras de tudo e de todos ao adquirir, em transe, o
espírito das coisas, pelo condão da transfiguração
do ser.
Nos dezoito textos (ou "relatos" como
indica o autor) reunidos em torno da idealizada Malindrânia
(não por acaso o conto homônimo é o nono, localizando-se,
portanto, no centro do livro), mito e realidade, linguagem metafórica
e referencial, alegorias e símbolos se fundem e se embaralham
na realização de algumas das melhores narrativas curtas
da literatura brasileira contemporânea.
caderno Idéias & Livros
JORNAL DO BRASIL
20/02/2010
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poeta a caçador de histórias
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