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POETA PLENO

Aos 80 anos, Lêdo Ivo continua escrevendo a poesia da vitalidade

Miguel Sanches Neto

Passados exatos sessenta anos desde sua estréia (As imaginações, 1944), Lêdo Ivo (nascido em 1924) aparece com nova coletânea poética que continua a surpreender pela beleza e pela pureza - Plenilúnio (Topbooks, 2004). O título do livro pode ser aplicado a este momento criativo do autor, ainda de lua cheia.

Qualquer tentativa de vincular Lêdo Ivo a uma corrente estética gerará equívocos. Poeta moderno por excelência, uma espécie de súmula poética do século XX, ele produz sonetos primorosos, dísticos sóbrios e versos curtos, em linguagem que ora tende para os meios da prosa, ora para os meios da poesia. Em uma tradição lírica construída para defender ideários, Lêdo Ivo destaca-se por não possuir programa - ele tem uma voz que assume modulações múltiplas, mantendo-se sempre acima dos formatos poéticos, dos quais se vale segundo suas intenções criadoras. O leitor não sente a passagem de um tipo de poema para outro, pois do começo ao fim é sempre o mesmo canto forte, marcado por um princípio afirmativo. Não espere o leitor a dicção flácida do lirismo indeciso que tomou conta de nossa poesia. O poeta fala com firmeza - exemplar nesse sentido é "O vencedor", texto em que vencer não tem conotação social, tratando-se de um canto de vitalidade na hora crepus-cular:

Quero tudo a que tenho direito
[...]
De nada abrirei mão enquanto estiver vivo
(p.47).

Tal postura é responsável não só pela força de seus poemas, mas também por sua motivação interior. O livro abre com o texto que lhe dá título, composto por cenas da vida do Rio de Janeiro. A lua cheia vai unindo todos os seres da noite, dos marginais aos ingênuos, sugerindo que a poesia é esta lua sem preferências, que aceita todos e tudo, é a lua vária, dos desvarios e dos desvalidos, dos devassos e dos devotos, sem discriminar ninguém, pois espelho da cidade, resumo de uma multiplicidade de situações que, apesar de antagônicas, formam um único ser sob este pastorear democrático do astro.

O livro girará em torno das referências à luz. Não há uma defesa da faca solar, metáfora central da poesia de João Cabral de Melo Neto, companheiro de geração de Lêdo Ivo. Para este, o sol e o dia são forças perigosas por negarem mistério e magia - "Não suporto mais as coisas claras", p.52. Ele ficará com o crepúsculo - visto sem dramatismo - e com a noite luminosa, momentos de convívio entre luz e sombra. Esta luz difusa constitui sua herança:

Entre lumes dispersos resplandeço.
Resplandeço entre lumes.

Rodeado de luz vou entre os homens
Na tarde que atrai moscas e formigas.
(p.31)

Por estes dísticos de "A entrega", percebe-se que o poeta brilha na tarde, com seu lume humano, refulgindo algo interior. O homem em estágio de crepúsculo não demoniza a sombra, exercendo seu destino de luz. A tarde é o momento central do poeta, que recusa a claridade extrema para ficar com sua suavidade ("A promessa da tarde"), preparação para a noite e extensão do dia que termina sem de fato terminar.

Luz e sombra se misturam, assim como vida e morte, princípio e fim. Esta ausência de fronteiras entre os opostos livra o poeta da escolha de qualquer um dos lados. Ele é o que vive e o que fala, mas também o que morre e o que cala, um dependendo do outro, desfazendo assim a lógica negativa do que vem depois - a noite. Pela lua cheia, ainda é o sol, um sol menos agressivo, mais humano, que acolhe aqueles que não se acertam com a claridade do meio-dia. Ao negar a lógica da anterioridade, ele desarma o simbolismo negativo da noite:

Debaixo do sol
ou junto do farol
o que vem depois
é o que vem antes.
(p.69).

O depois e o antes são o mesmo, matéria luminosa que se confunde, que se alterna, não havendo hierarquia entre elas, assim como não existe hierarquia entre viver e morrer. Ao entender esta posição de Lêdo Ivo, compreende-se o vitalismo de sua poesia. Não há depressão, não há sofrimento, pois a morte perde a natureza de ponto de chegada.

A noite afasta-se do sentido simbolista, participando do dicionário moderno, sem nenhuma conotação passadista. E este é um dos grandes serviços que Lêdo Ivo presta à nossa cultura, desfazendo clichês. Ao evitar o culto da linguagem como território absoluto e imaculado, a noite e seus símbolos voltam à cidade dos homens. No poema "Minha pátria", ele se recusa a repetir Fernando Pessoa, como fazem os poetas brasileiros das últimas décadas, devolvendo espessura ao chão natal: "Minha pátria não é a língua portuguesa. / Nenhuma língua é pátria. / Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci" (p. 15). Idéia repetida em "O mormaço": "sou o meu lugar de nascimento" (p.26), diferencial de uma obra que não aposta no afastamento, mas na recuperação das raízes profundas.

A língua é instrumento do homem e não substituto seu, lição que vem sendo esquecida em nossa poesia contemporânea. A linguagem tem um papel serviçal, o poeta funcionando como meio de comunicação, elo de união ("sou apenas dois lábios / que se abrem na noite / ferida pelo vento", p.18), mas portador de uma mensagem que é dele e de todos. Este seu papel não é político, embora questões políticas caibam nele. É humano, no sentido em que a poesia deve funcionar como abertura para a vida e seus mistérios, forma menos simplista de participação do tempo presente: "Mesmo quando estou sozinho, caminho entre os homens" (p.63). Mas caminha também entre símbolos, entre palavras, numa solidariedade mais extensa.
Em uma obra com estas características, o silêncio passa a ser algo quase criminoso. É uma fuga da vida:

É este silêncio que me incomoda.
O silêncio dos corvos pousados na grama.
O silêncio do mundo quando há corvos.
(p.24)

Idêntico valor tem o silêncio lingüístico, renúncia ao poder da palavra poética. Nesta defesa da linguagem em estado de plenitude criadora, Lêdo Ivo corrói a magreza de nossa linguagem lírica, propondo o retorno das "palavras banidas", fazendo-as retomar suas tarefas de signo. A língua não é pátria, por ser menor do que o real, mas sofre uma ampliação, saindo de seus domínios franciscanos, de secura vocabular e de monotonia minimalista, para um momento de brilho intenso, de completude das suas virtualidades criadoras.

Com Plenilúnio, as dicotomias clássicas da poesia brasileira contemporânea (solar/lunar, secura/languidez, isolamento/participação, tradicionalismo/modernidade etc.) não se resolvem por exclusão, mas por soma, o que faz de Lêdo Ivo um poeta com todas as idades literárias.

Caderno G
GAZETA DO POVO

Curitiba
28/06/2004

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