WILSON MARTINS ESPECIAL
Alcir Pécora
Chama acesa
Eu quase nunca concordava com o crítico Wilson Martins.
Ao longo de muitos anos, talvez se contem nos dedos de uma mão
as ocasiões em que terminei de ler uma resenha sua sem ter
com ela alguma divergência grave, um ou mais pontos em que
nossos credos estéticos pareciam água e óleo.
O que demorei mais a descobrir foi que, por baixo de toda aquela
discussão, havia uma concordância maior, um pacto sem
a qual ela, a discussão, cairia no vazio. Martins ousava
falar da literatura de dentro, seu pensamento era inteiramente feito
de literatura. Ele não partia do livro para chegar a outro
lugar, nem vinha de outro lugar para abordar o livro. Morava ali,
e quando saía era para inspecionar a relação
do livro com… outros livros. Avesso a sistemas, a “verdades”
importadas de campos fora das letras, arriscava o pescoço
a cada resenha. É o que torna sua História da inteligência
brasileira tão caótica e tão interessante:
o pulso de vida real. A literatura para Martins nunca era sintoma,
era o que importava, como deve mesmo ser, se você tem a pretensão
de se declarar crítico literário. Quando o relativismo
cultural começou a tentar nos convencer — e como a
universidade embarcou! — de que a qualidade literária
é pura ideologia, pura balela, sobrou pouca gente para manter
a chama acesa. Wilson Martins foi um desses. Foi quando seu famoso
conservadorismo adquiriu uma certa aura de vanguarda. E eu descobri
que pouco importava se, contando nos dedos, eu quase nunca concordava
com ele.
Sérgio Rodrigues é escritor, jornalista e editor
do blog Todoprosa. É autor dos livros As sementes de Flowerville
e Elza, a garota, entre outros.
Fim de raça
Crítico rigoroso, sincero, honesto. Não cultivava
o compadrio. Era fiel apenas a si mesmo e à literatura. Um
dos intelectuais mais completos que este país já conheceu.
Não teve receio de escrever uma obra tão vasta e ambiciosa
como sua História da inteligência brasileira. Nunca
nos encontramos pessoalmente, mas através de bilhetes e de
mensageiros que eram nossos amigos comuns. Nesses diálogos
descontínuos, percebia-se o homem afável e generoso,
que não hesitava em apontar defeitos em meus livros, mas
que também sabia elogiar aquilo de que gostava. Pela imprensa,
deu-me alguns epítetos elogiosos, escandalosamente exagerados,
fato incompreensível para alguns dos meus colegas escritores
— e também para mim, diga-se.
Wilson Martins cumpriu seu papel com elegância e conhecimento.
Sem ele, a cultura de nosso país seria mais pobre. É
possível que tenha sido uma espécie de fim de raça,
isto é, da raça dos críticos que, mesmo conhecendo
a teoria, sabem escrever da maneira que os leitores entendem.
Uma perda, reparável, por certo, mas não com a mesma
qualidade e sabedoria.
Luiz Antonio Assis Brasil é romancista, ensaísta
e cronista. É autor de livros como Videiras de cristal, Música
perdida e O pintor de retratos, entre vários outros.
Herdeiros de seu exemplo
Todo grande pensador começa por dizer não ao convencional.
Assim se deu com Wilson Martins, um dos nossos poucos autores de
obra anticonvencional e revolucionária. Em entrevista a Miguel
Sanches Neto, admitiu-se sem “talento suficiente para escrever
um livro chamado Os brasileiros, assim como Luigi Barzini escreveu
Os italianos”. Ao contrário do que imaginava, acabou
por escrever esse livro em História da inteligência
brasileira, ensaio-síntese que nos situa e define. Pouco
dado a efusões, contundente em seus pontos de vista, Wilson
Martins abordou seus temas frontalmente e sem preconceitos, apesar
da imagem de aparente antipatia que lhe atribuíam opositores
circunstanciais. Consultar seus livros tornou-se logo hábito
nacional, embora nem sempre admitido e confessado. Em termos de
intuição crítica, erudição e
qualidade estilística, acompanham-no de perto muito poucos:
Antonio Candido, Sergio Milliet, Fausto Cunha, Alfredo Bosi. Em
tempo de serviço, no entanto, foi muito além, superando
até mesmo alguns abnegados de obra extensa e importante como
Temístocles Linhares, Massaud Moisés ou Otto Maria
Carpeaux. Não há dúvida de que sua obra de
crítico literário, crítico da cultura e historiador
vai repercutir nas próximas décadas e provavelmente
nos próximos séculos, enquanto existir esta estranha
atividade que nos move — de ler e escrever, de sondar o mundo
em que vivemos. Pode-se também dizer que a crítica
de jornal terminou com Wilson Martins, isto é, a crítica
sistemática e hebdomadária como ele a concebeu, paradigma
de sua geração e cuja origem nos remete ao modelo
francês, ou seja, ao século 19. Somos todos herdeiros
de seu exemplo — este exemplo maior de amor ao Brasil e ao
saber.
André Seffrin é crítico de literatura e artes
plásticas, com passagem por diversos veículos da imprensa
nacional. Organizou diversos livros, de autores como Rubem Braga,
Lúcio Cardoso e Samuel Rawett, entre outros.
I walk alone
Wilson Martins é consultado na preparação
das aulas, mas pouco discutido dentro delas, além de estar
quase ausente das bancas universitárias. Acho que isso deve,
em parte, à ruptura do pacto de cordialidade. Martins tinha
mão pesada e gosto pela sova que dava em vários colegas
de ofício, alguns com representação institucional
importante. “I walk alone” — ele parecia dizer,
com orgulho, a cada vez que desancava um deles.
Mas essa é apenas a hipótese mais imediata para o
silêncio que pesa sobre o seu imenso trabalho. Penso que ele
se explica mais profundamente não apenas pela exacerbação
crítica, como pela sua erudição, tão
distante do ramo atual em que se fazem as especializações:
se entra com um autor no IC, se segue com o mesmo projeto no mestrado
e será o mesmo, ampliado, o bojo do doutorado e do pós-doc.
O que é, a rigor, um contra-senso: em humanidades, ou em
literatura, quem sabe um não sabe nenhum. Erudição
não se dispensa sem custo para a inteligência letrada.
Wilson Martins não deixava que se esquecessem disso. Além
disso, insistia em se manter na crítica de jornal, onde lia,
ajuizava e palpitava muito, em vez de se concentrar no consensual,
dentro de um nicho conquistado.
Enfim, dado que o jornalismo literário e autodidata praticamente
desapareceu das redações, e que a própria literatura
saiu de moda faz tempo nos departamentos universitários compreende-se
que o achassem antiquado, de um e de outro lado da barricada. Ele
sabia perfeitamente disso tudo, e mais ou menos se acomodou à
imagem nostálgica de “último crítico”.
Nunca o conheci pessoalmente, mas imagino que morreu tranqüilo
consigo mesmo.
Alcir Pécora é crítico literário,
professor de literatura na Unicamp e colaborador da Folha de S.
Paulo. Também é autor de diversos livros, como Teatro
do sacramento, Máquina de gêneros, As excelências
do governador e Rudimentos da vida coletiva, entre outros.
GAZETA DO POVO
01/03/2010 |