BULIMIA INTELECTUAL
Topbooks repara indigência editorial com relançamento
de José Veríssimo
Wilson Martins
Referindo-se à sua “extraordinária capacidade
de leitura”, José Veríssimo observou que o anglo-saxão (poderia
acrescentar-lhe os franceses, russos e alemães) diferenciavam-se
dos brasileiros, que, segundo Rui Barbosa, sofrem de dispepsia literária.
A referência ocorre em substancioso ensaio sobre “A vida literária
dos Estados Unidos” na preciosa coletânea sobre Homens e coisas
estrangeiras, agora no volume único em que foram reunidos os
três das edições originais (Rio: Topbooks/Academia Brasileira de
Letras, 2003).
Veríssimo, como Rui Barbosa e alguns poucos,
sofria, ao contrário, de bulimia literária, “disfunção” que origina
em grande parte, se não na maior parte, a invejável grandeza histórica
de russos, alemães e franceses, além dos “anglo-saxões”. Por outro
lado, nossa dispepsia literária explica, mas não justifica, que
os estudos de Veríssimo, como tantos outros de importância equivalente,
jamais tenham sido reeditados, quando, por suposto, deviam ter presença
permanente em nossa vida intelectual. “O caso mais grave dessa atropelada
trajetória editorial”, observa João Alexandre Barbosa na introdução,
“foi terem permanecido em primeiras edições os três volumes da obra
Homens e coisas estrangeiras, de 1901, 1905 e 1910, respectivamente,
e que somente agora, quase um século depois, encontra em José Mario
Pereira, da Topbooks, um editor decidido a reparar tal indigência
editorial”.
José Mario Pereira preocupa-se sem cessar com
o que falta em nossa vida editorial, assim como Veríssimo escreveu
sobre o que faltava à literatura brasileira (título de um artigo
de crítica): se os Estudos de literatura brasileira, agora em sete
volumes, foram reimpressos em nossos dias, sem, aliás, qualquer
repercussão perceptível na feira literária (mais interessada em
Benjamin, Bourdieu e Bekhtin, para ficar na letra B), o “lado universal”
de Veríssimo, com novas dimensões para a leitura e avaliação do
seu “lado nacional”, permanecia na sombra, como a face oculta da
Lua. Na sombra de velhas bibliotecas, onde raramente penetram os
freqüentadores de livrarias em busca das últimas novidades.
Ora, a situação é grave por duas razões, acentua
ainda João Alexandre Barbosa, nossa maior autoridade no assunto:
“em primeiro lugar, com referência à própria imagem do crítico que,
do escritor apenas ocupado por assuntos de literatura e cultura
brasileira, tal como geralmente é visto, ali se revela como um leitor
de literatura universal que, num trabalho sempre vinculado ao jornalismo
imediato, buscava atualizar-se, e ao leitor brasileiro, com o que
de mais contemporâneo se fazia e se debatia no terreno das idéias
e das letras; em segundo lugar, os textos escritos por José Veríssimo
terminam por ser uma importante contribuição para o próprio estudo
da época brasileira em que se inscrevem, termômetros sensíveis de
aspirações e circulações intelectuais.”
Nem de longe competimos — no passado e na atualidade
— com a “extraordinária capacidade de leitura” dos anglo-saxões,
e a prova está em que “pouquíssimo sabemos nós brasileiros das literaturas
americanas (...), pouquíssimo sabemos nós americanos da literatura
uns dos outros”. Veríssimo tinha em mente o conhecimento profundo
e orgânico, não apenas as informações de oitiva transmitidas pelos
jornais e acontecimentos efêmeros: “Não deixa de ser curioso que
conheçamos, de simples nomeada ou de leitura, não importa, uma meia
dúzia de nomes da literatura americana de 20 anos para trás e ignoremos
por completo até os nomes dos seus escritores nossos contemporâneos.
(...) Em tudo nós somos ainda obreiros de segunda mão, copistas,
imitadores.” O que então se conhecia da literatura norte-americana
era “um catálogo de nomes que não nos dizem a nós brasileiros, a
mim pelos menos, grande coisa”. A julgar pelo volume de traduções
comerciais, tiradas das listas de best-sellers, e na maior parte
obras de fancaria, a situação não melhorou muito em nossos dias.
E a América chamada latina, onde, segundo a canção
revolucionária, “somos todos hermanos”? Veríssimo dizia associar,
“sem injustiça”, os seus compatriotas na maciça ignorância das literaturas
hispano-americanas: “a ignorância é recíproca, isto é, os outros
hispano-americanos (os outros escrevo porque hispano-americanos
também somos nós, pois Portugal é Espanha) igualmente nada sabem
das nossas letras”. Nada sabem nem querem saber, acrescento eu,
porque, para os nossos “hermanos”, o Brasil, a língua portuguesa
e as suas letras são corpos estranhos, encarados com indiferença,
se não com hostilidade. Nosso amor pela América Latina é amor não-correspondido,
no qual nos coube o papel feminino, se posso lembrar a metáfora
predileta de Gilberto Freyre.
Veríssimo referiu-se ao que era, naqueles dias,
a “desesperadora superioridade dos franceses”. Ai de nós! ai deles
glórias passadas, grandezas para sempre perdidas! Os anos que passam
são tão volúveis quanto o coração dos mortais, mas, de qualquer
forma, em Veríssimo o conhecimento da respectiva literatura resultava
de constante convívio com obras e autores, muitos dos quais, àquela
altura de prestígio incomparável, mergulharam no Letes insondável
da ingrata posteridade. Vai muito de convencional e de verdades
aceitas tanto na glorificação literária quanto nas condenações aparentemente
definitivas. Diz, por exemplo, a sabedoria das nações que ninguém
mais lê Anatole France, forte candidato, entretanto, à releitura
livre de preconceitos e juízos sumários. Alexandre Dumas foi há
pouco recolhido ao Panthéon dos grandes homens e da Pátria reconhecida,
em cerimônia esplendorosa que teve tanto de cívico quanto de reivindicativo
e nostálgico — o mesmo Dumas, acentuava José Veríssimo, a quem todos
os brasileiros devem “horas deliciosas de prazer, de esquecimento,
de diversão e emoções”, autor, dizia um crítico inglês pro ele citado
com aprovação, mais favorito “das massas” literárias que das “classes”
literárias.
Quando tantos revolucionários de gabinete falam
e refalam nas “massas”, será talvez tentadora a releitura de Alexandre
Dumas, escritor de sangue vermelho, homem que descobriu na história
o que tem de fictício e maravilhoso.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
27/09/2003
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