FIGURA DE POETA
Lêdo Ivo foi logo reconhecido como um prodígio
de cintilantes fulgurações
Wilson Martins
Com "As imaginações",
em 1944, Lêdo Ivo reintroduziu a emoção poética
na poesia brasileira, naquele momento transviada pelos resíduos
do pitoresco modernista e, mais ainda, pelos exercícios escolares
dos numerosos poetas, jovens e menos jovens, da chamada Geração
de 45, enquanto, paralelamente, o insolúvel João Cabral
se entregava ao seu obsessivo cerebralismo de laboratório.
São conhecidas as reservas, se não a sonsa hostilidade
de Lêdo Ivo com relação ao Modernismo, sendo,
por outro lado, mais do que evidentes as suas incompatibilidades
com as laboriosas composições da "poesia 45"
convencional: ele mesmo se vê como "transgressor"
das verdades aceitas naquele momento, traduzidas em imenso mostruário
de banalidades repetitivas e repetidas, sob enganosas aparências
de profundidade intelectual: os poetas representativos dessa escola
eram eruditos de gabinete procurando imitar os verdadeiros clássicos,
propostos como modelos nos manuais de poética antiga.
Em conjunto, a "poesia de 45" foi anacrônica
por definição e coletivizante por necessidade, enquanto
os grandes poetas são sempre individualistas autônomos
que deformam ou conformam o que encontram, exatamente o que ocorre
com Lêdo Ivo: "sempre me considerei um escritor transgeracional
- inclusive porque desde minhas primeiras tentativas em prosa e
verso me guiou a ambição de durabilidade" ("Confissões
de um poeta". 4 ed. Rio: Topbooks/Academia Brasileira
de Letras, 2004). Ele apareceu, e foi desde logo reconhecido, como
um prodígio de cintilantes fulgurações, desmonetizando
os valores então prestigiados na bolsa da literatura: "No
meu caso pessoal, tive a fortuna de ser reconhecido imediatamente,
quando de minha aparição. Entretanto, quando uma conveniência
editorial ou uma interpelação crítica me obrigam
a remexer velhos e quase esfarinhados recortes de jornal, observo
que muitas das vozes de aplausos não vinham desprovidas do
empenho em evitar que eu trilhasse determinado caminho - e este
era, precisamente, o caminho de minha singularidade, a estrada em
que os meus passos certos haveriam de encontrar a confirmação
de mi-nha diversidade. Mais de um olhar experimentado e professoral
não via com bom olho a flor que eu trazia na mão -
preferia que esta viesse vazia, ou segurando aquela rosa conhecida
de todos, e por todos aspirada".
Agora, 60 anos depois, é o mesmo jovem
poeta com a sua diversidade que se encontra em "Plenilúnio"
(Rio: Topbooks, 2004), renovando, por exemplo, o velho topos
romântico da lua, transposto para a realidade sórdida
do mundo real: "Ó lua do Rio, das perversidades e dos
desvarios ... Ó lua das pobres peruas que rondam as rodoviárias
rodando as bolsinhas... Ó lua dos gays e reis destronados,
branca branca lua alva como as hóstias e as brancas mortalhas...
Ó cruel e frígida lua dos suicidas que alumia a morte
e escurece a vida (...)". Como no poema machadiano, o que chamamos
de morte é apenas o outro nome da vida - duas faces da mesma
moeda terrível: "Meus poemas, reunidos, formam uma autobiografia.
Compõem a história de minha vida secreta - uma existência
transformada em sinais, que exige uma leitura atenciosa, como a
dos códigos e semáforos".
Códigos que os maus poetas não
sabem compor e os maus leitores não podem decifrar. Já
se disse que toda literatura é autobiográfica, sendo
natural, por isso, que a realidade profunda de "Ninho de cobras"
seja a mesma do poema "Minha pátria": "Minha
pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci... e
o vento que sopra em Maceió... São os caranguejos
que correm na lama dos mangues... e o oceano cujas ondas continuam
molhando os meus pés quando sonho. ... Minha pátria
são os apitos dos navios... e o farol no alto da colina.
... São os estaleiros apodrecidos... e os cemitérios
marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos e impaludados não
param de tossir e tremer nas noites frias (...)".
O passado que se acumulou por sedimentação
na memória é o presente do poeta, chave críptica
que permite penetrar no mundo aparentemente imaginoso dos poemas.
Daí ser enriquecedora a leitura das suas "Confissões":
"Afinal de contas, que livro é este que, como uma cesta
de papéis usados às avessas, se vai formando em minhas
gavetas, construído de sobras e excrescências, divagações
e transvagações, composto com o que não serve
para os outros livros? Uma autobiografia espatifada, um diário
íntimo, o romance de uma inteligência, o fragmento
de um intelecto ou de um instinto, o livro de bordo do navio da
vida, um poema em prosa alvejado pelas mutilações
e interrupções incessantes e inevitáveis? Ou
é o meu livro de razão - para usar aqui uma expressão
mercantil - destinado à contabilidade de minha existência?".
Pelos caminhos misteriosos do subconsciente,
a "expressão mercantil" remete à figura
do pai, evocada por Lêdo Ivo em páginas de grande nobreza
e sensibilidade: "Ferido irremediavelmente pela morte, meu
pai pensou em viajar, partir. Mas já era tarde. Apenas o
barco de Caronte estava à sua espera no cais de onde ele
via os navios. O seu universo fora o centro de Maceió: os
cartórios, as varas cíveis e comerciais, o Tribunal
de Apelação, a porta do Bar Colombo, a livraria jurídica
do dr. Cândido, a calça-da da Sapataria Lages. (...)
Num elogio dessa natureza aos que sempre confiaram e seguem confiando
no poder e na ação de uma Justiça verdadeiramente
justa (...) haveria lugar para aquele advogado provinciano (...)".
Tendo penetrado na vida literária pelo
portal mítico da Livraria José Olympio, Lêdo
Ivo escreve sobre ela a página proustiana do tempo perdido:
"Na rua do Ouvidor, identifico o sítio em que florescia,
na década de 40, a Livraria José Olympio. É
um banco: Mammon tomou o lugar de Ariel. À minha memória
retorna, mais uma vez, o espetáculo perdido (...)".
Sobrevivente de uma época de que os sobreviventes se tornam
cada vez menos numerosos, ele recupera por um instante a vida febricitante
de intrigas e esperanças que era o centro privilegiado de
nossa vida intelectual, hoje desfile de sombras que só a
memória pode recuperar.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
24/07/2004 |