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VOLTA À LITERATURA

Wilson Martins

Depois de longa temporada de decadência, entregue à subliteratura e à pornografia que não ousava dizer o seu nome, o conto brasileiro parece estar renascendo das cinzas e voltando à sua natureza original e autêntica. Para perceber que se trata de uma tendência (e até para desejá-lo...), é preciso considerar em conjunto diferentes autores e diversos volumes publicados em 2003, todos refletindo, de uma forma ou de outra, a reconquista da literatura em todas as suas virtualidades.

O primeiro sinal foi o Prêmio Cruz e Sousa 2002, conferido a Miguel Sanches Neto pelos contos de “Hóspede secreto”, agora em segunda edição, ampliada (Rio: Record), simultânea com “A sombra do meio-dia”, de Sérgio Danese (Rio: Topbooks). Um conto de 157 páginas?... De fato, não é a extensão, mas a estrutura, que distingue o romance, por um lado, e, por outro, o conto e a novela (número de personagens, simplicidade ou complexidade da intriga, desenvolvimento linear ou “em rosácea”, unicidade ou multiplicidade episódica, para mencionar os mais evidentes). Digamos, para evitar polêmicas inúteis, que se trata de uma novela intimista, fortemente influenciada pelo “Adolphe” (1816), de Benjamin Constant (1767-1830), clássico paradigmático do gênero. Além das referências explícitas ao livro e ao autor, o mesmo “tom de voz” narrativo reaparece no texto de Sérgio Danese. É o que os leitores de “Adolphe” (quantos existirão em nossos dias, além dos professores?) perceberão sem dificuldade, mas, para percebê-lo, é preciso a leitura continuada, resistente a citações avulsas. Note-se: não se trata de imitação ou decalque, mas de espíritos afins, com a mesma sensibilidade.

As contaminações ou, se quisermos, a qualidade literária é ainda mais perceptível nos contos de Francisco de Morais Mendes (“A razão selvagem”. Ciência do Acidente), não só em referências literais (“Quimeras”), mas também nas incidentais, como ao professor que costumava “lembrar o texto de John Bart, ‘Quimeras’, onde está escrito: ‘Histórias duram mais que homens, pedras mais que histórias, estrelas mais que pedras’ (...)”. Sérgio Danese e Francisco Morais Mendes pressupõem leitores com razoável cultura literária: “Se abril, como assinalou o poeta, é o mais cruel dos meses, a quarta-feira é o mais cruel dos dias” (“A crítica da razão selvagem”). É verdade que muitos se perguntam por quê abril parecia tão cruel a T. S. Eliot...

O cinema influencia de torna-viagem as obras de literatura, como acontece em “Estrela nua: amor e sedução” (Rio: Record), de Maria Adelaide Amaral. Aqui também se multiplicam as referências à literatura e à música, tornando a narrativa algo rebuscada e “preciosa”, no extremo limite em que a arte degenera em artifício. Trata-se de paráfrase de um filme conhecido (“Crepúsculo dos deuses”, 1950), tanto na situação central quanto na repetição recíproca de dois figurantes no desenvolvimento da intriga. A novela não transmite, entretanto, a atmosfera de irreparável tragédia que é a substância da obra cinematográfica, com a morte de um personagem e a loucura, já então clínica, do outro. Na novela de Maria Adelaide Amaral, a conclusão recai na subliteratura: “Foi então que percebi que atrás do quadro havia uma mensagem. Não uma carta, mas um bilhete sucinto onde estava escrito: desfrute”. Não é a palavra, menos ainda o desenlace, das grandes tragédias.

É sabido que o surrealismo confina com a inverossimilhança, fronteira invisível e, aliás, movediça, exigindo o mais escrupuloso respeito à lógica interior do absurdo. Séculos atrás já se dizia que o verossímil, sem ser verdadeiro, deve transmitir a sensação da verdade. Limitado pela ambição surrealista de suas histórias, Paulo Sandrini ignora o preceito e cai no arbitrário (“O estranho hábito de dormir em pé”. Curitiba: Travessa dos Editores).

Tomemos, por exemplo, o conto “O martelo de Thor”. Mudando-se para um condomínio fechado recém-construído, o narrador se encontra numa situação estranha: “o cheiro acre e o barulho semelhante a um tropel foram os motivos que nos levaram a crer que na casa ao lado da nossa havia algo de muito aterrador. (...) No entanto, não havia sinais evidentes de que havia gente dentro da casa 13. (...) No transcorrer dessa mesma semana, durante as madrugadas, o barulho recrudescera. Nossas paredes eram acometidas por verdadeiros tremores (...)”. Afinal, arrombada a porta da casa onde ninguém fôra visto entrando ou saindo, eis o que os vizinhos encontraram: “Estavam lá: três desgraçadas porcas e um cachaço, guinchando; uma mula nervosa, soltando vez em quando uns coices e trotando pra lá e pra cá; e uma vaca, num exíguo estábulo no canto da sala, puro osso. Isso embaixo. No plano superior, galinhas (...)”.

Em contos dessa natureza, é preciso que o leitor “acredite” nas situações insólitas, o que, no caso, é impossível, porque ficou sem explicação aceitável como tantos animais de grande e de pequeno porte foram introduzido no condomínio e na casa sem que ninguém percebesse, nem mesmo o porteiro da entrada principal... Inverossimilhança que o autor agrava ainda mais, propondo, ao final, uma explicação “realista” para os fatos.

Há, contudo, o “surrealismo” da vida cotidiana, a banalidade estranha, território de Wagner Mangueira (“Vamos passear na floresta?” Curitiba: Medusa), como o homem recolhido num asilo de velhos: “Onde eles arranjam ânimo para ir vivendo eu não sei. (...) Tenho 77 anos, tive duas filhas, três netos e dois bisnetos. Contrariando a lei natural, enterrei a todos. (...) Aqui, a coisa funciona assim: ao chegar somos examinados e radiografados da cabeça aos pés, por dentro e por fora. Com o diagnóstico vêm as receitas médicas, as restrições alimentares e físicas (...)”. (“Futuração”).

O absurdo existencial, que nada tem a ver com o surrealismo literário, é o território de Francisco Paula Freitas (“Café e bar Ponto Chic”. Rio: Bertrand Brasil): “O professor Lourenço Dias era um homem calmo. Estatura mediana, muito claro, falava baixo. Uns óculos de grossas lentes emprestavam-lhe um ar um tanto antigo”. Pois esse homem pacífico e inofensivo foi uma bela manhã conduzido à Delegacia Política e Social, desaparecendo de circulação. Quando voltou, tempos depois, “mais magro, sem paletó (...) faltando-lhe um dente incisivo (...)”. Esse é o realismo surrealista do nosso tempo.

Caderno Prosa & Verso
O GLOBO

Rio de Janeiro
13/03/2004

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