METÁFORAS PRECISAS E TRANSGRESSIVAS
Praia provisória, de
Adriano Espínola. Editora Topbooks, 116 páginas, R$
28
Cyana Leahy
Nada acontece se não lermos poesia, mas
se o fizermos, muito pode acontecer. A inutilidade da poesia é
sua força. Sem aplicação direta e imediata,
ela move montanhas, sentidos, percepções, exercícios
de vida, problematizando a imaginação. O poema é
um ritual de intensidade emocional; para decifrar o enigma, é
preciso entender seu desenho verbal. É preciso ler, de fato,
cada poema, como se fosse o único. E o reler, de preferência
em voz alta, para perceber os efeitos sensoriais, como nos poemas
de Praia provisória, de Adriano Espínola.
“Chove. As mesmas chuvas/ do instante caem
adiante/ aos pés de outras uvas./ O agora chega molhado./
As passas vêm do passado”. Ver, ouvir, saborear os gostos
e os perfumes da chuva. O sensorial tem sua própria memória
e conduz a emoção. Depois, ao passar para o poema
na página seguinte, tentar estabelecer um diálogo
com o anterior. “À noite, os mortos são navegantes
velozes./ Vão ao vento, no mar singrando as próprias
vozes”. Nada de perguntar o que o autor quis dizer com isso,
que é pergunta mais esotérica que literária.
Faz-se a pergunta à palavra, instrumento artístico,
que traz a linguagem e seus efeitos para o primeiro plano.
Ler Praia provisória
faz pensar na palavra, na arte, no contexto, elementos que compõem
o triângulo interdisciplinar da educação pela
literatura, e que são construções de profundo
efeito transformador. Ali está o habitus do poeta, suas leituras,
influências e marcas fundamentais. Ao mesmo tempo, ele usa
tempo e espaço para provocar desconforto, desacomodar interesses,
saberes e sentidos, como bom educador. Da poesia social ou participativa
produzida nos anos 1980 (Fala, favela) à
urbanidade explícita das esquinas da imaginação
e da memória na poesia dos anos 1990 (Táxi
e Metrô), Espínola chega à palavra
justa, breve, precisa. Mais livre, pois pensada com régua,
compasso e dicionário, caleidoscópio de fragmentos
coerentes de vida e de sentidos.
Se já havia beleza plástica, sensorial,
em Lote clandestino, o poeta agora arrisca mais,
brinca com o idioma e com a forma, constrói metáforas
concentradas e transgressivas com as quais tenta ‘dizimar
seus exércitos’. Aprimora a construção
ritmo-espaço, cuja matriz está na formação
concretista, na Fortaleza natal dos anos 1960. Rota natural: o artífice
busca a contenção e a síntese que sucedem a
análise.
Poesia concreta, homenagem a Shakespeare (em
inglês), cantiga d’amor medieval são algumas
das surpresas encontradas nos cinco tempos / temas que organizam
a obra: “Maramar”, “O sol desnudo”, “Os
hóspedes”, “Os navegantes velozes”, “Armadilha
para Orfeu”. Homenagens, inspiração, desejos,
confissões. Simetria, clareza e equilíbrio clássicos
revelam as referências e ascendências inspiradoras,
reconstruídas em exercício responsável e exaustivo,
na poesia atual de Espínola. Como em “Ulisses”:
“A minha pátria é o agora./ A ela retorno como
outrora”. O produto desse exercício é o verso
estrangeiro e familiar, que compartilha com leitores o olho e o
ouvido do poeta, sua identidade.
Voltemos ao poema. Olhar, ouvir, sentir, para
só então entender, em um processo de análise
e síntese entre versos, poemas, livros. O exercício
de leitura acontece pelo diálogo entre as palavras do poeta
e nossas palavras, entre seus e nossos sentidos, emoções,
pensamentos. O indispensável diálogo entre mim e o
Outro. Para refletir sobre a palavra, a arte e o contexto dessa
praia provisória.
caderno "Prosa & Verso"
O GLOBO
10/03/2007
Nota: Todos os livros do poeta acima citados foram editados pela
Topbooks
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