ADRIANO ESPÍNOLA E A MÚSICA
FURIOSA DA POÉTICA DE FUNDADORES DE CIDADES
Ricardo Vieira Lima
Adriano Espínola é um mestre consumado do verso,
seja livre ou medido, rimado ou branco. A assertiva pode ser comprovada
pela simples leitura, ao acaso, de qualquer um dos livros de poemas
do autor. Que os leitores prefiram a viagem épica, erótica e vertiginosa
de “Táxi” (1986) e “Metrô” (1993), reunidos, em versão definitiva,
no volume “Em trânsito” (Topbooks, 1996); ou as belas e originais
metáforas praianas de “Beira-Sol” (Topbooks, 1997), livro que revigorou
as formas fixas e a poesia regionalista no Brasil, é mais uma questão
de temperamento do que de imperatividade de escolha. O fato é que,
em ambas as vertentes, a mestria de Espínola é inquestionável.
Mesmo nas obras de menor expressão do poeta cearense,
a exemplo de “Trapézio” (1984) e “Fala, favela” (1981), os méritos
são muitos. O primeiro talvez seja um dos melhores livros de haicais
já publicados entre nós. Infelizmente, o volume pouco ou quase nada
circulou (a não ser em Fortaleza, cidade natal do poeta), mas, devido
às suas qualidades intrínsecas, merece uma reedição urgente. Quanto
a “Fala, favela”, trata-se de um poema dramático concebido, a princípio,
para ser representado nos palcos dos festivais universitários nordestinos.
Publicado em livro e reeditado há cinco anos pela Topbooks, o texto
se destaca por ter sido o primeiro poema a abordar a grave questão
da moradia nos grandes centros urbanos brasileiros. Vale lembrar
que “Favelário nacional”, de Drummond, só viria a público em 1984.
Como se vê, a originalidade e a habilidade poética
do autor em questão já estavam presentes desde os seus primeiros
trabalhos. Prova disso é o relançamento de “O lote clandestino”,
livro que, originalmente, foi publicado em 1982 — portanto, um ano
após “Fala, favela” — e que, tal como o seu antecessor, também teve,
de início, edição precária (mimeografada!) e de circulação restrita.
Em nova e condigna roupagem editorial, Adriano anuncia, na abertura
do volume, que eliminou versos e poemas da edição princeps, reescreveu
outros e adicionou mais alguns textos, além de duas seções de poesia
“gráfico-espacial”, intituladas “Urbs” e “Grafites”.
Conquanto as duas seções acima citadas despertem
algum interesse no leitor — afora três ou quatro tentativas bem
sucedidas, como “Catai-Catai”, “Alteridade” e “Balanço”, o resto
não passa de poesia concreta requentada — é na primeira parte de
“O lote clandestino” que se encontram os melhores poemas do livro.
Alguns deles, sem dúvida, antológicos, a exemplo de “Minha gravata
colorida”, “O banquete dos mendigos”, “O projeto”, “Vertical”, “Avenida
Brasil”, “O sinal” e “Fragmentos de uma poética do lugar”.
Esses textos, em verdade, dão idéia da postura
estratégica de Espínola: buscando fazer uma ponte com a melhor tradição
lírica universal, ele se nutre, com freqüência, da obra de Whitman,
Pound, Ginsberg e Pessoa e, entre os brasileiros, sobretudo Drummond,
Bandeira, Joaquim Cardozo e Oswald de Andrade. Mas é uma postura,
frise-se, não-submissa, autônoma, por meio da qual o poeta se apropria
da essência de cada um de seus mestres e, com o intuito de estabelecer
uma nova dicção, fundada no “tempo presente”, incorpora à sua própria
voz ecos de seu cânone particular.
Por não temer o peso literário do passado, Espínola
consegue inovar, no tocante ao tema clássico da viagem, presente
desde Homero e Virgílio, resgatando a originária condição do poeta
de fundador das cidades: “Sim, uma cidade é uma cidade é uma cidade.
/ E não há nada que se compare a isso, / nesse momento em que a
vida se densifica / e explode, / rolando sua música furiosa pelas
calçadas. / (...) / Sim, o lugar de tudo é na cidade”.
Com efeito, a chamada poesia moderna tem início
a partir das obras de Poe, Baudelaire e Lautréamont, escritores
que refletiram, cada um à sua maneira, o crescimento acelerado e
desordenado das cidades. Adriano Espínola dá continuidade a essa
linhagem, embora consciente de que sua fala é a de um poeta brasileiro
contemporâneo simultaneamente telúrico e cosmopolita. Um habitante,
enfim, de uma metrópole litorânea nordestina, em pleno século XXI:
“Atravessando a Praça José de Alencar, / por entre carros, vozes,
buzinas e caras apressadas, / sinto por um segundo / como se cruzasse
o viaduto da Avenida Anhangabaú / ou saltasse do subway de Nova
York, / (...) / Ah, nada mais universal / do que um trecho qualquer
agitado de uma grande cidade, / ao sul do oriente do Ocidente!”
Em geral, os poemas de “O lote clandestino”,
assim como o restante da obra de Adriano, constituem aquilo que
o autor, em brilhante momento de intuição autocrítica, chamou de
“uma poética do lugar”. Logo, essa é uma poesia que nasce a partir
de referências concretas. Como João Cabral, Espínola escreve, a
princípio, sobre o que vê e está a seu redor. Acrescente-se o imprescindível
elemento subjetivo, inerente a qualquer obra de arte, além da maneira
de dizer do poeta, e temos, então, o seu modus operandi. Neste sentido,
a “poética do lugar” existe porque “A poesia, companheiro, está
onde se é. / (...) / Não necessita de ser buscada / no topo das
montanhas não-mágicas, / (...) / ou no suor dos lavradores distantes.
/ (...) / A mim, me basta vê-la (onde estou), / no meio da rua,
/ desritmada como a vida, / (...) / seguindo / pelas ruas da memória
& do esquecimento, / (...) / cá dentro de mim mesmo ou dos subúrbios.
/ (Se eu vivesse noutro lugar, / a poesia estaria naturalmente noutro
lugar, / mesmo se eu imaginasse o contrário disso tudo)". Pois bem:
a verdadeira poesia não tem pouso certo — irrompe à beira-sol, à
beira-mar... ou à beira do asfalto. Importa colhê-la, apreciá-la
e, no caso de Adriano Espínola, degustá-la com prazer, já que estamos
diante de um arguto intérprete da “canção áspera do tempo”.
Ricardo Vieira Lima é crítico literário e poeta
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
10/01/2004
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