O CHAPLIN DE CARLOS HEITOR CONY
Reeditado com outros ensaios, texto
de estreia do escritor, de 1956, explora as contradições
de Carlitos, comparado a personagens clássicos
Alvaro Costa e Silva*
“Chaplin e outros ensaios”, mais
recente obra publicada por Carlos Heitor Cony, é um retorno
ao início da carreira do escritor. O texto sobre Charles
Chaplin, que abre e ocupa 142 páginas das 290 do livro, nasceu
de uma conferência que Cony fez na Sociedade Cultural Hebraica
em 1956, em seguida editada numa plaqueta. Era a estreia do autor,
que abandonara o seminário para virar jornalista e dava os
primeiros passos na literatura. Três anos depois, o material
foi ampliado para uma série de artigos que ocuparam página
inteira do “Suplemento Dominical do Jornal do Brasil”.
No intervalo entre a publicação de dois romances —
“Balé branco” e “Pessach: A travessia”
—, o autor deu forma definitiva ao trabalho, enfeixado pela
Civilização Brasileira em 1967.
Carlos Heitor Cony
A reedição da TOPBOOKS — acrescida dos “outros
ensaios”, de que falaremos abaixo — traz algumas notas
de atualização. Continua uma análise vigorosa,
a qual parte da comparação com a melhor fortuna crítica
disponível na época — John Grierson, Vsevolod
Pudóvkim, Luigi Chiarini, Maurice Bessy, Maurice Bleiman,
Robert Florey, Gilbert Seldes, Robert Payne — para dar seu
recado. Que se concentra mais em torno da criatura, Carlitos, que
do criador, Chaplin.
As comparações literárias
abundam. Depois de citar Homero e Cervantes, escreve Cony: “Chaplin
obteve o que poucos artistas alcançaram — e talvez
apenas Shakespeare tenha obtido resultado igual: transformar o seu
personagem, tão lúcido e primário à
primeira vista, tão real, tão cotidiano, tão
universal, num poço de indagações, de contradições
sociais e existenciais, prenhe de todas as não respostas
dos grandes personagens shakespearianos, dos quais o modelo mais
próximo talvez seja Hamlet”.
O ciclo chega até Dickens. Ou melhor,
à refutação de que Carlitos teria sido um personagem
que o romancista inglês havia esquecido de inventar: “Sua
linha ficcional prende-se à grande linha literária
da década de 1920 — e Chaplin foi até mesmo
anterior a ela, sendo assim um precursor. (...) Tal como os personagens
de Faulkner, Dreiser, Hemingway e John dos Passos, Carlitos extasia-se
frente à própria debilidade, à própria
desventura, à própria impotência”.
Análise de obras menos exibidas
Em relação à carpintaria
fílmica, o escritor encara o repúdio de Chaplin ao
cinema sonoro como parte de seu reacionarismo técnico, lembrando
que o cineasta resistiu enquanto pôde, só capitulando
na cena final de “O grande ditador”. Mesmo assim, não
se valeu de uma fala, de um diálogo, mas de um sermão.
O que contava, em suas próprias palavras, era “a beleza
do silêncio”. E, claro, o fato de ser ele um mímico
excepcional.
Depois de esmiuçar personagem e processo,
o autor complementa o ensaio com breve sinopse biográfica
e filmografia comentada. Esta última, além de ideal
para ler após assistirmos aos filmes, apresenta alguns dos
momentos mais iluminadores do livro. São as breves sacadas
sobre as produções menos badaladas e exibidas. Sobre
a obra-prima “The pilgrim” (“Pastor de almas"
no Brasil), observa Cony que, “como história, é
a melhor de Chaplin. Sem derramamentos, sem apelos emocionais insistentes,
sem desvios discursivos”. Também há um sermão
na fita, sobre o duelo Davi e Golias. Perfeito, e feito por mímica.
O restante do volume é uma “collage” armada com
prefácios e artigos de imprensa, muitos destes encomendados
por Paulo Francis (que assina a quarta-capa) ou publicados na série
“As obras-primas que poucos leram”, da revista “Manchete”.
A seleção de nomes diz muito da personalidade, digamos,
“do contra” que Cony assumiu ao longo não só
de sua empresa literária como também diante da opinião
pública. Quem mais poderia reunir, lado a lado, o papa Karol
Wojtyla e o imperador Nero? Tomás de Aquino e Máximo
Górki? Teilhard de Chardin e Federico Fellini?
Três ensaios analisam Manoel Antônio
de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto como representantes
maiores da linhagem do romance carioca. Segundo Cony, a bagunça
arma-se desta maneira: “Fazer Capitu dar o braço a
Policarpo Quaresma no enterro do major Vidigal”. Por essa
bastante e simples razão, não entram no cortejo José
de Alencar, Aluísio de Azevedo e Raul Pompeia, que, embora
tenham escrito livros com tipos e paisagens do Rio, não pegaram
a essência avacalhada da coisa. Pois, se é assim, este
resenhista pergunta: onde meter Marques Rebelo?
No texto sobre Robbe-Grillet, cuja intenção
é discutir o futuro e os descaminhos do romance, o autor
é esquemático: “O triângulo Joyce-Kakfa-Faulkner
(Joyce e Kafka como catetos, Faulkner como hipotenusa) estrangulou
o romance”. Acaba sobrando para Guimarães Rosa, tema
de longo artigo no qual Cony chama a atenção para
o nome do pai do escritor mineiro, mistura que guardaria a chave
para a linguagem roseana: Florduardo. Apesar dos elogios derramados,
a visão é crítica: “Guimarães
Rosa e ‘Grande sertão: veredas’ foram considerados
gênio e obra-prima de forma abrupta. (...) Pouco a pouco o
impacto da obra do genial autor vai adquirindo o seu real contorno,
grande o suficiente para ser o monumento de nossa língua,
território glorioso de nossa cultura, mas bem distante, talvez,
do grande livro de um povo que ainda persegue o seu caminho e a
sua afirmação”.
*Alvaro Costa e Silva é jornalista
caderno Prosa & Verso
O GLOBO
09/02/2013
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