A ÂNSIA DE SER O MESMO SENDO OUTRO
DIFERENTE
Felipe Fortuna, cuja obra não é
objeto de confortável rotulação, toma
a ironia da própria criação poética
para resistir à ordem das coisas
Marcos Pasche
“Diferença” é
a palavra de ordem da contemporaneidade. Por um lado, é termo
central nas reivindicações civis de grupos tidos como
socialmente negligenciados. Por outro, o vocábulo traduz
o poder de assimilação e de imposição
do mercado, uma vez que é tomado pelos “diferentes”
como estampa febril de traços distintivos da convenção.
Apesar de, ou justamente por isso, a mesmice e a repetição
se revelam itens imprescindíveis à sustentação
da marcha social. Na política, por exemplo, é impossível
separar o setor progressista do conservador. O beijo homossexual
de personalidades midiáticas tornou-se “protesto”.
Tudo isso encontra um habitar cativo na grande imprensa, que repete
agora a novidade de amanhã.
Diferentemente do que se pode supor, artistas
também são abraçados pelo polvo da moda homogeneizadora.
É comum ouvir entre eles uma autoclassificação
anticlassificatória, que se manifesta contra o cimento dos
gêneros. Aqui não se defende uma estética monótona:
são inegáveis os frequentes casos em que a ausência
de gênero coincide também com a ausência da própria
arte, e assim, pela diferença, todos se afirmam idênticos.
INSERIR A LÓGICA ONDE ELA NÃO
SE ENCONTRA
Acerca disso intervém “A mesma coisa”,
novo livro de poemas de Felipe Fortuna. A intervenção
pode ser entendida ao menos de duas maneiras: a poesia, fenômeno
da sensibilidade, ousa resistir à ordem das coisas e intromete-se
na república pós-moderna como contra-voz da falácia
triunfante, dentro da qual tudo se repete em falsa clareza: “O
que existe / é superfície, matéria opulenta
/ da vida futura / com suas cortinas / de celofane e vidro fumê.
/ Ninguém arrisca. / Você fica, / no final morre o
dublê. // A cópia é tudo o que se vê”
(grifo meu).
O outro âmbito da questão –
o mais importante para o livro – é o que diz respeito
à ânsia do poeta que busca ser o mesmo (com solidez
identitária) ao passo que se esforça para não
ser sempre o mesmo, ou seja, o que se repete, mostrando-se estagnado.
Considerando isso, o título do livro sinaliza seu caráter
irônico (aqui se toma ironia pela acepção de
“questionamento”), porque, primeiramente, irônica
é a própria criação poética –
um fazer independente de determinações lógicas
e funcionais.
Em segundo lugar, e inserindo a lógica
onde geralmente ela não se encontra, seria impossível
que qualquer poeta atribuísse a um livro seu um nome tão
desabonador, como a indicar que ali nada há de novo, sendo,
portanto, indigno de atenção. Não se trata
disso. Felipe Fortuna coloca em tensão elementos do existir
biológico e cultural do homem apontando-o como ser estruturalmente
mutante e permanente: “Copiar nos transforma no que somos:
/ adenina timina uracila / e seguem os nomes vitais / encadeados
e emparelhados / a nunca dizer basta”. Os termos em destaque
formam o ADN (DNA, em inglês), que, pelo idioma químico,
é um polímero de monômeros, ou seja, a polivalência
da unidade, a pluralidade do mesmo: eis a base da constituição
genética humana.
Bem no verso seguinte aos últimos citados,
o poeta evoca o discurso convencional da propaganda e da lei, subvertendo-o:
“Não aceite imitações. / Este original
autentica esta cópia / mas, sobretudo / esta cópia
autentica este original”. Eis, então, o diagnóstico
da ironia do autor de “Atrito” e de uma preocupação
central do poeta, que habita existências refratárias
entre si, e que também vê na unidade expressiva um
fim a ser alcançado.
Mencione-se ainda outro tipo de partida reunião
– a dos poetas e críticos convergentes num só
escritor. A mesma coisa declara no início: “Eu sou
igual a um anagrama”. Pode-se ler no verso um juízo
acerca da própria obra de Felipe Fortuna, cuja poesia não
é objeto de confortável rotulação, conforme
demonstram seus quatro livros anteriores, marcados por uma escrita
constantemente diversificada. Daí ser procedente ver no livro
de agora uma mesma, sim, porém outra coisa.
Marcos Pasche é crítico literário,
autor de “De pedra e de carne: artigos sobre autores vivos
e outros nem tanto” (Confraria do Vento)
Publicado no caderno Prosa & Verso de
O Globo, em 4 de maio de 2013.
Leia mais:
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