A POESIA MADURA, MAS VIÇOSA DE LÊDO
IVO
Em Plenilúnio, o poeta alagoano
aborda de forma original temas clássicos do gênero,
como a lua, o real, o amor e a morte
José Nêumanne
Ao contrário da prosa, cuja qualidade
depende muito da maturidade de quem a pratica, a poesia é
um gênero literário que dispensa a vivência como
fonte de aprimoramento. Para os prosadores - como comprova o maior
dos praticantes desta arte nascidos no Brasil em todos os tempos,
o mulato Machado de Assis - valerá sempre aquele famoso conselho
de Nélson Rodrigues a uma platéia de estudantes: "Envelheçam,
meus filhos, envelheçam!" Para os poetas, não
necessariamente. Semente de talento bruto que germina graças
ao viço, a poesia pode até ser prejudicada pelo passar
dos anos, se deixando contaminar pela esclerose, pelo reumatismo,
pela vista cansada e outros achaques da idade avançada. Vai
ver foi por isso que Arthur Rimbaud, após produzir uma obra-prima,
"Le bateau ivre", aos 16 anos, e mais um punhado de poemas
que o colocaram no pódio do gênero, embarcou para a
África, onde passou a idade adulta contrabandeando armas.
Correndo o risco da generalização, dir-se-ia que o
prosador, como o vinho, melhora com a velhice, enquanto o poeta,
qual suco cítrico, corre o risco de perder seu valor protéico
e vitamínico com o passar do tempo, depois de espremida a
fruta. O poeta alagoano Lêdo Ivo é uma exceção
a essa regra, comprovando em seu último livro, Plenilúnio,
que o exercício rotineiro da escritura só lhe tem
aprimorado o verso e a verve.
Ele já abre o volume apresentando armas.
O primeiro poema, que dá título à coletânea,
chega a dar inveja pelo primor de ourivesaria e pela variedade das
técnicas usadas, sem que, contudo, sua admirável artesania
supere a singeleza com que se apresenta ao leitor. Nele, o poeta
rima e metrifica, lidando com as formas fixas com familiaridade
idêntica à com que passeia pelo verso branco. É
incrível a habilidade com que ele funde a balada ibérica
com o cante a palo seco de seu colega João Cabral, sem perder
a unidade que percorre o volume do primeiro ao último verso.
Repare, amigo leitor, o exemplo destes versos:
"Casta lua esdrúxula, / teu raio ilumina / o sonho das
bruxas / e estelionatários". Veja como o uso da vogal
u seguida da consoante xis nas palavras que encerram o primeiro
e o terceiro constroem uma interessante rima virtual, que, na verdade,
deveria ser definida como interessantíssima, até para
que o proparoxítono atraia sua atenção para
a conexão feita entre a última palavra do primeiro
verso e sua correspondente no quarto. Essa flutuação
entre a rima e o verso branco e a métrica e a ausência
de ritmo caracteriza a maestria com que o autor resolve, de forma
a não deixar dúvidas, a velha questão entre
o que é poesia e o que é apenas prosa quebrada (gênero
cujo mais ilustre praticante no Brasil é o matogrossense
Manoel de Barros), encerrando também a antiga querela sobre
a natureza bastarda da poesia modernista pela negação
programática dos cânones da metrificação
e da rima. Peço vênia para prosseguir citando os três
versos seguintes, pois no terceiro, como se verá, será
encontrada uma rima para o quarto anteriormente citado: "Lua
enfeitiçada / pousada no olhar / dos visionários".
E mais adiante é perceptível a extensão do
efeito rítmico obtido pela insistência nos proparoxítonos:
"Lua espermática / que clareia a insônia / das
virgens cloróticas". Este termo de extração
eruditíssima se reporta ao sinônimo que ele usa para
fechar o segundo verso do poema: "Uma lua enorme / paira no
céu pálido / de minha cidade".
"Plenilúnio", o poema,
mereceria ocupar todo o espaço desta resenha, mas é
impossível calar sobre Plenilúnio, o livro. Pois se
faz necessário chamar a atenção para a abordagem
inovadora de dois temas clássicos do fazer poético:
a concretude e a morte. Alexei Bueno, autor do texto da orelha do
livro, destaca com propriedade o fato de o autor remar contra a
tendência pós-cabralina e concretista, sobretudo, de
tomar por real apenas "o mais grosseiramente concreto".
Contra essa "coisificação" da poesia, ele
vem com a manifestação, esta sim, fiel à verdade
da palavra, já no terceto de abertura do poema "A realidade":
"Um fantasma é tão real / como a fachada gótica
/ de uma catedral". E não é?
Com graça ("Minha vida eterna / é
problema meu. / Que ninguém se meta / Onde não é
chamado"), simplicidade ("Assim é a morte / água
fria apaga /o fogo que ardia") e exatidão ("O que
nasce morre. / O que vive passa. / Toda eternidade / termina em
fumaça"), Lêdo Ivo submete a morte, como a coisa
e a Lua, à poesia: de forma corriqueira, mas profunda, gaiata
e melancólica, tratada com temor e irreverência.
José Nêumanne, jornalista
e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde e autor de
Solos do silêncio - Poesia reunida.
O ESTADO DE S.PAULO
23/05/2004
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