REFLEXÃO INQUIETA E CRÍTICA
Moacir Amâncio*
A mais legítima prova de amor à
poesia talvez consista em odiá-la até o desprezo.
Mas esse amor só pode se consubstanciar na prática
poética. É nessa mão dupla que trafega A
Mesma Coisa, de Felipe Fortuna. O volume traz só três
poemas, mas eles têm extensão de média até
longa, como no caso do poema-título. Os demais são
O Suicida e Contra a Poesia. O tom irônico cobra
presença – como vai bem numa poesia que muitos podem
considerar obra da inteligência e não da emoção,
como se as duas não estivessem misturadas, e como se fosse
possível escrever poesia à força de burrice.
Fortuna abre o livro com um lugar-comum atroz:
“Eu sou igual a um anagrama. / Meu indeciso amor a Roma me
/ levou a confundir a imitação”. Proposital,
claro. Seu poema constitui uma reflexão inquieta e humorada
sobre a própria poesia e o fazer poético. Logo depois
vêm os seguintes versos: “Eu me repito / mesmo / quando
não copio”. Frase de duplo sentido; dependendo da ênfase
da leitura, o significado muda.
O poeta é divertido, mas não se
pode confundir o fútil com o lúdico. O poema questiona
o indivíduo, a identidade, no sentido existencial, o poeta
e a poesia. Se a originalidade tornou-se impensável, então
só resta a atitude crítica de desvendar a mesmice
e suas armadilhas. Como se estivéssemos numa sala de espelhos
deformantes: a figura refletida é uma só e muitas,
só muda a mesmice e no final das contas ela é a coisa.
O poema termina de modo clownesco, quando o eu
lírico se coloca no centro da arena, ao pé da escada,
sob o foco de luz, com um suspiro e um sorriso, pois lhe resta apenas
a ironia de saber-se “reprodutível e nunca mais / esquecer
a dor de ter sido / o único a saber”. Como ela sabe
que outros também sabem, insinua-se uma senha para a comunicação.
Trata-se da solidão, repito, da sala de espelhos presente
em certos mafuás, em que o ego se revela subvertido e a solidão
se multiplica.
Próximo passo: O Suicida. Um texto
machadiano, narrado pelo anti-herói morto pelas próprias
mãos, mas, em vez de permanecer em silêncio como convém
aos desencarnados de bom comportamento, ele fala e termina com um
protesto claro, ao observar o corpo morto que, no entanto, dá
sinais de vida, pois “unhas crescem” e “cuja /
pele deve ser bem raspada / ou defendida contra a rosa”. A
rosa, imagem alegórica da “poesia”, aqui, provavelmente,
a antipoesia que não enfrenta a mesmice. E, portanto, deve
ser odiada.
Sempre o caminho contrário, a teologia
negativa como única possibilidade da epifania, em Contra
a Poesia: “Abre-se uma flor e nada há: / a origem
do mundo não foi vista / e pela via negativa / o poeta se
inclina sem medida”. E decreta que o apodrecimento é
muito acessível, como se dá com o pôster de
qualquer celebridade literária ou não. Resta ao poeta
ler “em silêncio / tudo o que pode ou o impede / de
ser, poeta, o mesmo”. Entretanto, o que o impede de ser, torna-o
poeta. A crítica mais eficiente só poderia ser exercida
através da expressão artística, pois ela em
si contém o que contesta e também faz a proposta da
mudança. O livro de Fortuna pode ser visto como uma experiência
consistente nesse sentido. O poeta domina os ritmos e brinca com
eles, seja no verso livre, seja no metrificado.
Ao propor uma poética negativa, o livro
não cai na armadilha (outra) da antipoesia que se fossiliza.
Incorpora linguagens e as questiona e nisso fica explícito;
todas as situações humanas (ou naturais?) se dão
num beco sem saída, nem o suicídio nos livrará
disso, porque as palavras persistirão independentes da nossa
presença, ou ausência.
* MOACIR AMÂNCIO É PROFESSOR DE
LITERATURA HEBRAICA NA USP E AUTOR DE ATA, ENTRE OUTROS
Publicado no caderno Sabático de O
Estado de S. Paulo, em 16.03.2013.
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