DR. JOHNSON, PARA ALÉM DOS RÓTULOS
POLÍTICOS
Daniel Piza
Numa era em que tantos rótulos se esfacelaram
e, ao mesmo tempo, em que se procura tanto rotular as outras pessoas,
Samuel Johnson (1709-1784) é um caso a ser reavaliado. Foi
o maior crítico literário de sua geração,
o que significa que era uma espécie de autoridade cultural
e moral na Inglaterra e em todo lugar onde se lesse inglês.
Sua influência chegou a tal ponto que seu assistente, James
Boswell, ele mesmo um ensaísta respeitável, escreveu
sua biografia e o livro se tornou um clássico da humanidade,
presente em qualquer coleção de grandes obras ocidentais,
graças à sua personalidade efervescente, autor que
era de aforismos famosos (como "O patriotismo é o último
refúgio dos canalhas") e de trabalhos fundamentais também
em poesia e ficção. Leu como ninguém seus contemporâneos
(Alexander Pope, por exemplo) e ainda produziu um dicionário
fundamental da língua inglesa. Também foi controverso
ao acusar Shakespeare de vulgar e, politicamente, foi sempre um
"tory", um conservador.
O volume de seus Escritos Políticos
(Topbooks), da coleção Liberty Classics, que sai pela
primeira vez no Brasil, tem justamente a intenção
de ir além desse rótulo de "conservador".
No excelente prefácio, o organizador do livro, Donald J.
Greene, resume bem a questão: "O fato é que um
"tory" do século 18 era tão diferente daquilo
que chamamos de "tory" no século 20 quanto um "liberal"
no reinado da rainha Vitória (que acreditava que a liberdade
da iniciativa individual de acumular riqueza não deveria
ser tolhida por nenhum tipo de interferência dos governos)
é diferente de um "liberal" americano da metade
do século 20 (que crê precisamente o oposto); em suma,
que a dicotomia macaulayana é um erro e tentar interpretar
um pensamento político tão sutil e tão complexo
quanto o de Johnson em termos dessa dicotomia irá inevitavelmente
produzir distorções flagrantes". O historiador
Macaulay é citado por sua afirmação de que
todo o progresso inglês se devia aos "whigs", à
"esquerda".
Em outros termos, não se pode rotular
Johnson como um cara conservador, de "direita", porque
ele não o foi como os outros de sua época ou mesmo
de épocas posteriores. Ele era, por exemplo, contra a expansão
colonial inglesa, contra a escravidão e, claro, contra o
patriotismo. Conservadores em geral, como se sabe, acreditam que
seu país tem uma missão civilizatória, quer
estejam vinculados a um pensamento econômico "laissez
faire" (Adam Smith, embora também com ressalvas), quer
ao da linhagem marxista (contrária ao capitalismo). Johnson
não está, portanto, no nicho de um pensador como Edmund
Burke, que, ao criticar com muita propriedade as boas intenções
revolucionárias (que terminam não raro produzindo
a tirania), termina exaltando demais a permanência do status
quo, a aversão às mudanças, o apego à
rotina. Poderíamos dizer que Johnson é um "conservador
com toques liberais", ou seja, que reconhece que novas leis
e reformas são às vezes necessárias.
E em que sentido era conservador? No sentido
de que defendia uma importância capital para a religião
na condução da sociedade e temia seriamente a modernidade,
ou seja, o aumento das responsabilidades sobre cada indivíduo.
Ele desconfiava das utopias, do liberalismo mais idealista, rousseauniano,
que acreditava que poderia consertar o ser humano com algum rearranjo
social. Esse ceticismo, porém, era sadio até certo
ponto, pois Johnson chega a dizer que "toda mudança
é por si só um mal ao qual não devemos nos
arriscar, a não ser que a vantagem seja evidente", mais
ou menos como o marido que desiste de se separar da esposa chata
porque não sabe se com uma nova será melhor ou pior...
Por isso, vê uma necessidade de "subordinação"
(sem autoritarismo) na sociedade, e acredita que a monarquia seja
o melhor caminho para manter essas aparências – e certamente
ficaria feliz em ver os comentários mundiais ao recente casamento
do príncipe William com Kate Middleton. "Toda a pompa
é instituída em benefício do público",
escreve em 1761. "Um espetáculo sem espectadores já
não pode ser um espetáculo."
Compreender o pensamento político de Johnson,
portanto, pode iluminar muitas questões de sua época
e do presente, mas, ao contrário do que Greene afirma, sua
abordagem do tema está longe da vitalidade de sua crítica
literária. A maioria dos textos reunidos no livro é
chata. O problema não é apenas a datação
de eventos, nomes e debates; é a própria linguagem
de Johnson, lenta, professoral, cheia de dedos diplomáticos,
construída em torno de ganchos frouxos como "Deixemos
que os efeitos do subsídio sejam considerados detalhadamente".
Não são ensaios em tom de conversa com o leitor; parecem
enunciados para uma reunião de gabinete: "O gado teve
mais sucesso que os legumes". É apenas nos textos mais
conhecidos, como O Alarme Falso (1770) e O Patriota
(1774), que encontramos um pouco do tônus argumentativo que
o fez famoso como "dr. Johnson". Mas suas ideias políticas
não podiam ser facilmente rotuladas – e isso é
infelizmente raro até hoje.
caderno Sabático
O ESTADO DE S.PAULO
07/05/2011
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