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Obras de um conjunto habitacional do Minha Casa Minha Vida no Vale do Paraíba (SP) - Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress

DA PALHOÇA AO BARRACO

Antonio Risério reconstitui a evolução da moradia no Brasil, critica o Minha Casa Minha Vida e defende uma reforma fundiária

 

Alexandre Benoit

“Depois que parei de fumar, os cheiros da cidade me invadem as narinas.” Com divagações como essa, Antonio Risério inicia A casa no Brasil, estudo que dá continuidade às investigações que o antropólogo baiano vem fazendo sobre o fenômeno urbano no país. É uma narrativa que se desenrola em mais de quatrocentas páginas sobre os mais diversos aspectos da constituição das nossas cidades, desde os primórdios da ocupação portuguesa até o segundo mandato de Dilma Rousseff, tendo como foco as casas brasileiras.

Seu estilo barrocodélico — para empregar uma referência cara ao autor — faz desse percurso um emaranhado de temas e temporalidades que ele desdobra sem pressa, permitindo confrontar especialistas (urbanistas, sociólogos, historiadores) com poetas e romancistas, sem desconsiderar a vivência que as pessoas têm da cidade. Ficam claros alguns pontos essenciais dessa obra: a casa nunca será vista descontextualizada, a cientificidade dos acadêmicos será posta à prova através da literatura, e a experiência sensível estará em relação com a história e a cultura.

Segundo o autor, o morar brasileiro tem desde sempre uma dimensão sincrética que une o português, o ameríndio e o negro. Ao recuar para os primórdios da colônia, mostra-nos que fogo, palha e solidão são os elementos constitutivos da casa. Fogo, elemento essencial da vida doméstica, do lar, desde o começo da civilização humana. Palha a cobrir e dar forma à casa, afastando-a também de uma filiação única — não se trata mais da oca, tampouco da casa rural portuguesa ou da cabana africana. E solidão, pois as longas distâncias e o isolamento marcam os núcleos originais como unidades autônomas em meio ao vasto território.

Essa combinação gera uma sociabilidade própria, que se rebate na planta da casa, como em São Paulo nos testemunha a casa rural paulista, chamada bandeirista. Nela havia um espaço frontal, isolado dos demais, que servia de pouso para viajantes. Daí para fora estava a esfera da produção, do convívio com escravos e forasteiros; dele para dentro ficava a esfera privada, do convívio doméstico, o espaço ao qual a mulher estava segregada. Sua análise nos permite ver como, no Brasil, a relação público-privado prescinde de um espaço efetivamente social desde seu início, circunscrita que está à propriedade privada, regida pelo patriarca que, nos latifúndios, será o senhor de engenho. Se essa estrutura sofrerá todo tipo de mutação, como mostra o autor, nunca deixará de levar consigo as marcas desse começo, por um lado sincrético, por outro desigual, segregador e privado. 

O sobrado será a casa da elite e contará com o negro escravizado para atender aos caprichos dos moradores

No século 18, chamado por ele de “o século das cidades”, a casa se abre em sobrado, casa térrea, cabana e mocambo. O sobrado será a casa da elite dominante e contará com o negro escravizado, indispensável para atender aos caprichos dos moradores e às necessidades funcionais da edificação, expondo a relação entre o regime escravista e o primitivismo tecnológico de nossa sociedade colonial: “Para tudo servia o escravo”. Daí seu interesse particular pelo mocambo, a casa mais pobre, verdadeira “casa vegetal” onde residiria outra demonstração do sincretismo afro-luso-ameríndio, moldando a forma habitacional mais persistente da história da moradia no Brasil, que atravessa os séculos até as favelas contemporâneas quando palha, galhos de árvore e barro cedem lugar a zinco, plástico e tijolo.

Transformações na capital

No Rio de Janeiro, capital do Império e da Primeira República, o autor aponta profundas transformações da casa, vendo o solar e a chácara conviverem com o cortiço, a casa de subúrbio; já a vida privada da elite seria contaminada pelo espaço multívoco da cidade, com novos personagens ou que antes viviam marginalizados: escravos libertos, prostitutas, biscates, operários etc. É nessa cidade que a elite procura sua nova imagem, importando-a de Paris, fato que desencadeia grandes obras, como as reformas de Pereira Passos e Carlos Sampaio, cujo resultado é a expulsão da massa pobre para os morros.
Nesse trecho do livro é que sua aproximação com a literatura se faz mais rica, ao comparar o Rio de Machado de Assis ao de Lima Barreto, tomando o primeiro como alguém que “às virtudes da rua, preferiu os vícios caseiros” da elite suburbana, enquanto o segundo “abria foco sobre várias classes e grupos sociais (com a luz concentrada na dor profunda dos mais humildes), contemplando o conjunto do mundo urbano carioca”. 

O Minha Casa Minha Vida manteve um processo produtivo similar ao do BNH: baixa produtividade, desperdício, má qualidade

O ritmo da vida se acelera com a  urbanização do país a partir da Era Vargas, quando pela primeira vez a questão habitacional da massa trabalhadora não será ignorada, através de um programa estatal e populista de provisão de moradias, os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPS). Temos aqui um elemento incontornável de sua narrativa: o conjunto do Pedregulho de Affonso Eduardo Reidy (sob a condução pioneira da engenheira Carmen Portinho), inaugurado em 1946, considerado por ele uma “obra extraordinária, em matéria de visão social, funcionalidade arquitetônica e realização estética”. Isso porque as unidades habitacionais foram concebidas aliadas a todo um complexo de equipamentos (escola, creche, ginásio, playground, lavanderia, clube social, posto médico, cooperativa e mercado), que distinguia tal empreendimento de um simples conjunto habitacional, tratando-se, na realidade, de um redesenhar da moradia urbana popular.

Há também um feixe de muitas outras casas que Risério nos apresenta ao longo do livro, como o solar dos Garcia D’Ávila, a casa neocolonial, a vila operária, o mutirão e o exótico Mission Style californiano, que teria chegado até nós via cinema norte-americano, entre outros. No entanto, à medida que sua narrativa se aproxima do momento atual, pressentimos seu desconforto quanto ao lento apagamento disso tudo — experiências, histórias, edifícios e fatos, muitas vezes contraditórios, perversos ou cativos — e emerge como ameaça às casas brasileiras um espaço binário e chapado: a favela e o condomínio fechado. Por isso, suas vivências urbanas banais (a busca por uma padoca em São Paulo, a juventude rueira em Salvador) ou a imagem do Pedregulho retornam de tempos em tempos nas páginas de seu livro, no primeiro caso, como uma flânerie prestes à extinção e, no segundo, uma espécie de fotografia em branco e preto, “com seus mesmos tristes velhos fatos” que ele teima em colecionar. Esse incômodo se torna mais evidente quando passa a analisar o agravamento da crise habitacional.

Da ditadura à Era Lula

Ele toma dois milagres brasileiros, o milagre econômico dos militares nos anos 1970 e, mais recente, o milagre do crescimento da Era Lula. Daquele se origina o Banco Nacional da Habitação (BNH); deste, o Minha Casa Minha Vida (MCMV). O alvo de sua análise é o MCMV, que representa “a construção hoje das favelas de amanhã”. Nesse quadro, o BNH é retratado como antecessor e espelho do MCMV, pois esses dois programas guardam muitas semelhanças, exceto pelo tom populista do MCMV, definitivamente recusado pelos militares preocupados em anular a lembrança do varguismo e, consequentemente, dos IAPS. Ao destrinchar a dupla BNH-MCMV, tem-se três eixos definidores:

1. “meio para alimentar financeiramente o empresariado”;
2. “jamais [se] avançou no sentido de organizar a construção civil, aumentando sua produtividade”;
3. “nunca se preocupou em definir [...] instrumentos objetivos de controle do uso do solo urbano”.

Risério nos explica que o MCMV foi pensado como uma política anticíclica, estruturando-se essencialmente como linha de crédito para a construção civil, setor importante para a economia brasileira e também, como sabemos hoje, altamente vantajoso para os atos pouco republicanos da política nacional. Reproduzia-se, assim, a lógica do BNH, mas, ao contrário dele, não trazia estampado em seu nome a palavra “banco”, recuperando e acentuando a chave populista dos anos 1930. Como o objetivo principal era o ganho de capital e não a qualidade das unidades ou a eficiência da obra, manteve-se um processo produtivo similar ao do BNH: baixa produtividade, grande desperdício, má qualidade, com emprego extensivo de mão de obra desqualificada e sem preocupação com o meio ambiente. Cabia ao empreendedor do MCMV escolher as áreas dos novos edifícios, levando-os a terrenos mais baratos, logo piores e mais afastados das centralidades, gerando uma dupla espoliação, pois aquelas áreas escolhidas, muitas vezes, forçavam novos vetores de expansão imobiliária (leia-se especulação). Nos anos 1970, ocorreu o mesmo, e o caso mais emblemático é o da Cidade Tiradentes, bairro periférico de São Paulo que, ao ser inaugurado, era apenas uma imensa cidade-dormitório no extremo leste da cidade. No MCMV, privilegiaram-se ainda cidades médias, onde brotaram extensas periferias e uma paisagem desoladora: conjuntos de casas e predinhos repetidos à exaustão, destituídos de qualquer urbanidade.

Hoje há quem diga que não é possível criticar o programa integralmente, recorrendo ao êxito de sua escala e a exemplos pontuais que contrariam a regra — uma história a ser escrita. Por enquanto, as considerações de Risério se mostram absolutamente pertinentes, as quais, aliás, já foram levantadas por quadros históricos do urbanismo petista, como a arquiteta Erminia Maricato. Em entrevista recente, ela afirmou: “Esse investimento gigantesco [do MCMV], aliado a uma especulação de terras ciclópica, tornou as cidades ainda mais inviáveis no Brasil”. Ocorre que o MCMV não foi feito da noite para o dia, representando cerca de uma década de política habitacional. Como foi possível perdurar por tanto tempo algo assim?

Da parte dos interesses econômicos, não há muito o que dizer; da parte dos urbanistas e planejadores que mantiveram os olhos fechados para o desastre, repisava-se o discurso sobre o possível, evocando um pragmatismo necessário. Isso Risério percebe muito bem e, opondo-se mais uma vez, escreve: “A aceitação do ‘realmente existente’ traz consigo uma renúncia do inaceitável”. Arriscando, por fim, um caminho alternativo ao MCMV, chama atenção para o problema nodal do espaço urbano brasileiro: a questão fundiária, “o chão da cidade”. Diz que enquanto isso não for enfrentado, manteremos nossas cidades mais e mais desiguais, segregadas e violentas. Um único dado citado por ele resume a questão: “Existem no país nada menos do que sete milhões de moradias vagas”, das quais mais de cinco milhões em áreas urbanas. “É um escândalo”, conclui. Ele sugere que, talvez mais do que uma reforma agrária, necessitamos de uma reforma fundiária no país.

Opções estilísticas

Em todo o livro, Risério opta deliberadamente por uma escrita fluida, daí os diversos autores em que se apoia serem citados livremente, sem referência a edição ou página. Trata-se de uma opção estilística clara, para se opor ao que enxerga como uma pretensa cientificidade vazia ou ao eruditismo diletante dos intelectuais. Seu estilo condiz com a montagem barrocodélica a que me referi.

No entanto, há certos momentos em que sua escrita assume um tom excessivamente coloquial, com opiniões soltas ou sentenças taxativas sem maior lastro, sobretudo quando desqualifica figuras que considera seus oponentes, apelando a juízos de ordem pessoal. Nessas partes a obra perde força. Mas talvez seja um aspecto indissociável da viagem que nos propõe, afinal, A casa no Brasil está entre o alerta e a celebração: alerta-nos sobre o futuro sombrio do morar brasileiro caso a rota do desastre não seja revertida; celebra nosso devir contraditório e sincrético, pois brasileiro, absolutamente aberto a uma reconstrução permanente e antropofágica.

REVISTA QUATRO CINCO UM

01/11/2019

 

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A casa que não é lar

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