YEDA PESSOA DE CASTRO, AUTORA
DE "fALARES AFRICANOS NA BAHIA - UM VOCABULÁRIO AFRO-BRASILEIRO"
Editada pela Topbooks em convênio
com a Academia Brasileira de Letras, Falares africanos na Bahia
- Um vocabulário afro-brasileiro é a obra mais completa já escrita
sobre as influências das línguas africanas no português do Brasil.
Resultado de 40 anos de infatigável e meticuloso trabalho na Bahia,
na República Democrática do Congo (ex-Zaire) e na Nigéria, nela
se mostra o quanto deve a língua portuguesa aos numerosos idiomas
dos africanos que, embarcados à força para o Brasil, se tornaram
nossos ancestrais.
A autora é etnolingüista e doutora
em Línguas Africanas, com vários trabalhos publicados, também no
exterior, sobre as relações culturais e lingüísticas Brasil-África.
Sua obra é considerada uma renovação nos estudos afro-brasileiros.
Pioneira nas pesquisas-de-campo realizadas sobre línguas africanas
no Brasil e na África, dirigiu o Centro de Estudos Afro-Orientais,
da UFBA, fundou o Museu Afro-Brasileiro, foi adida cultural na embaixada
do Brasil em Trinidad e é membro efetivo do Comitê Científico Brasileiro
do Projeto Rota do Escravo, da UNESCO.
Como diz o acadêmico, diplomata
e historiador Alberto da Costa e Silva na apresentação de Falares
africanos na Bahia, nesta obra "consagra-se o papel fundamental
dos povos bantos na construção do Brasil e se reclama a atenção
para suas riquíssimas e complexas culturas". Segundo ele, Yeda Pessoa
de Castro escreveu "um livro de leitura e consulta, cuja importância
é tamanha que não pode estar ausente da estante não só daqueles
que se dedicam ao estudo do português do Brasil mas também dos que
se debruçam sobre a história da escravidão e sobre a formação do
povo brasileiro".
De quando vem o seu aprendizado
nas línguas de que trata o livro?
- Desde 1961, como aluna de iorubá, o primeiro curso de língua africana
no Brasil que foi dado no Centro de Estudos Afro-Orientais, onde
eu já era estagiária. Mas, na verdade, começou muito antes, não
sei bem quando, pois vivi uma infância, em Feira de Santana, ouvindo
rezas, cantigas, contos de pretas-velhas que sempre me intrigavam.
Deles não esqueci até hoje, a exemplo do "menino-mandu", que me
levou a escrever No canto do acalanto, e do "bicho-quibungo" em
Contos populares da Bahia. Também da negra Fortunata, temida como
"feiticeira cobé", e que era a minha portadora na "marinete" que
me levava - e sempre quebrava na estrada - de Salvador para a casa
dos meus tios, onde passava as férias. Na adolescência, conheci
Senhora do Afonjá, Menininha do Gantois, Eduardo de Ijexá, Procópio
do Ogunjá e Olga de Alaketu, por quem cultivo uma admiração até
hoje, assim como pela ialorixá Stella de Oxóssi, de quem também
tenho a honra de ser amiga. A partir daí, creio que começou a se
definir minha vocação pelo estudo de línguas africanas, um caminho
por que trilho com entusiasmo e prazer há quatro décadas da minha
vida acadêmica, num trabalho pioneiro de pesquisa-de-campo nos dois
lados do Atlântico.
Como e onde se deu a pesquisa
do seu trabalho?
- Na verdade, quando comecei a estudar dialetologia brasileira,
no curso de Letras da UFBA, e participei da pesquisa preliminar
para o Atlas Prévio dos Falares Baianos, em 1957. Por trama do destino
- como diz Olga do Alaketu, nada acontece por acaso - fui designada
por Nélson Róssi para a equipe de Feira de Santana e pude registrar
informações que já conhecia desde minha infância, a exemplo do termo
"cobé" para "feiticeiro temível". Decidi, então, me dedicar à pesquisa
sobre a linguagem popular da Bahia e a língua-de-santo no candomblé,
de que muito me valeu a leitura das obras de Jorge Amado. Foi quando
a UFBA, nos anos 60, abriu o mestrado em Ciências Sociais e apresentei
um projeto de pesquisa que teve financiamento da Fundação do Atlântico-Sul,
criada pelo humanista George Agostinho da Silva, o mesmo que fundou
o Centro de Estudos Afro-Orientais. Meu objetivo era entender o
que significava aquela "língua" para a comunidade afro-religiosa,
a sua origem e de que maneira ela influenciava a linguagem cotidiana
daquela gente e do português falado na Bahia. Comecei por Salvador,
mas me dei conta de que nada tinha sido feito até aquele momento
na região do Recôncavo, de grande densidade de população negra.
Assim, concentrei a pesquisa em Santo Amaro, na zona canavieira,
Cachoeira e São Félix, produtoras de tabaco durante o período colonial.
Para minha surpresa, descobri que a influência banto estava bem
viva na Bahia e o jeje não havia sido suplantado pelo iorubá, como
os acadêmicos afirmavam e, de certa forma, ainda se pensa no Brasil.
De posse do material recolhido nas casas-de-santo, entre suas lideranças
religiosas, o que inclui Feira de Santana por se tratar de uma região
entre o Recôncavo e o sertão baianos, fui para a Universidade de
Ifé, na Nigéria, a fim de concluir a dissertação de mestrado, que
apresentei à UFBA em 1971. No ano seguinte, por mais dois anos,
voltei a Ifé, de onde estendi a pesquisa à região jeje-fon do Benim.
No entanto, faltava a região banto, até então desconhecida para
nós. Foi assim que, em 1976, com uma bolsa do Itamaraty, escolhi,
para espanto da maioria, fazer doutorado em línguas africanas na
Universidade Nacional do Zaire. Àquela época a Unaza era um celeiro
de bantuistas. Como testemunhou Luís Beltrán, que faz a apresentação
do meu livro, minha pesquisa era um trabalho pioneiro que conseguiu
motivar todo um departamento - estudantes e professores - como colaboradores
e informantes. Mas ainda não me dei por satisfeita e continuo a
pesquisar nos dois lados do Atlântico o que vai ser objeto de outra
conversa e do meu próximo livro.
A Sra. trabalhou com uma equipe?
- Nos primeiros tempos, sim. Eram estudantes e bolsistas da UFBA,
à minha disposição no Setor de Estudos Lingüísticos do CEAO. Hoje,
conto com a colaboração valiosa de pesquisadores da África e do
Caribe na área de estudos afro-ibero-americanos, com os quais costumo
me reunir, pelo menos uma vez ao ano, em eventos científicos, a
exemplo do mais recente na Universidade Omar Bongo, do Gabão.
Quanto tempo durou a escrita
e a coleta do vocabulário que a sra. agora publica?
- A coleta sistemática do material, com questionário e entrevistas
diretas no Recôncavo, durou três anos sem interrupção, mais quatro
anos na Nigéria/ Benim e no Zaire. Quanto à escrita, passei esses
cinco últimos anos, com várias interrupções de viagens, ampliando,
analisando, aprofundando e comparando os dados da minha tese de
doutorado, que me custou um ano "enclausurada" pelo meu orientador,
o lingüista Jean-Pierre Angenot, no campus de Lubumbashi. Mas essa
coleta não pode parar. Lidamos com aportes culturais e lingüísticos
africanos, um processo em trânsito contínuo para a língua portuguesa
do Brasil. E mais dados surpreendentes surgem a cada dia através
de novas informações que sempre buscamos na África, e outras no
Caribe, principalmente Trinidad-Tobago, Barbados e Cuba, que conhecemos
também de perto, por ter residido três anos em Port-of-Spain, onde
implantei o curso de português e literatura brasileira na Universidade
das Índias Ocidentais.
Qual o grupo étnico que mais
influenciou a língua portuguesa tal qual a conhecemos hoje?
- Eu prefiro falar de grupo etnolingüístico. E esse foi o grupo
banto, pela comprovada superioridade numérica dos seus falantes,
distribuição geográfica e mobilidade humana, sua prolongada permanência
no tempo e no espaço em contato com o português durante os três
primeiros séculos de Brasil. Do ponto de vista lingüístico, as semelhanças
estruturais, casuais mas notáveis, entre as línguas bantos e o português
também em sua feição arcaica possibilitaram a continuidade do tipo
prosódico de base vocálica do português arcaico na modalidade brasileira,
afastando-o, portanto, da pronúncia atual, muito consonantal, do
português europeu. Creio que assim conseguiremos explicar por que
nós, brasileiros, ao contrário dos portugueses, lemos com correção
a métrica dos versos de Camões. Sobre o povo banto e suas línguas,
há um capítulo do livro voltado para esse assunto, com muitos mapas,
coisa de que se ressentem as publicações feitas no Brasil.
Como a senhora entende a influência
das línguas que estuda no falar do Brasil?
- Ela se mostra de maneira mais ou menos aparente no vocabulário
e na morfologia, onde permeia todos os níveis socioculturais de
linguagem, tanto quanto na sintaxe característica da linguagem popular
e na fonologia, responsável, em boa parte, pelas diferenças que
afastaram, na pronúncia, o português brasileiro do de Portugal.
E, aqui, podemos destacar a parte da interferência banto em todos
os níveis, sobre a que veio se sobrepor, como em um embricamento,
o influxo das línguas daomeanas, mais localizadas nas áreas de mineração,
e, por fim, o nagô-iorubá, em certas áreas costeiras e urbanas.
E essa influência oeste-africana se observa principalmente no campo
da religião, que é a atual fonte de aportes lexicais africanos no
português do Brasil. Não podemos esquecer, no entanto, que antes
de tudo estavam as nossas línguas indígenas. Sendo assim, entendemos
o português brasileiro como resultado de duas forças dinamicamente
opostas mas complementares. De um lado a imantação dos sistemas
fônicos africanos pelo português e, em sentido inverso, um movimento
do português em direção às línguas africanas, sobre uma matriz indígena
pré-existente no Brasil. É uma discussão técnica, mas no livro é
feita com uma linguagem aberta à compreensão de um público mais
amplo, pois nossa intenção não foi escrever apenas para especialistas.
De que níveis socioculturais
de linguagem a sra. fala?
- Falo dos cinco níveis que identificamos no processo de integração
dos aportes africanos em direção ao português do Brasil, tomando
como ponto de partida e como modelo a linguagem litúrgica dos candomblés,
um sistema lexical baseado em diferentes línguas africanas que foram
faladas no Brasil e, por sua própria natureza, mais resistente à
mudança e à integração sob a influência do português. Nesse nível,
tratamos dos casos de glossolalia, ou seja, do falar em transe dos
pretos-velhos e erês, dos caboclos e dos "santos". Já no nível 2
- a linguagem do povo-de-santo - discutimos a questão do conceito
de "nação de candomblé" e o significado do termo "nagô", confundido
com o iorubá moderno, e que muita gente pensa que é a língua africana
falada no candomblé da Bahia, como se o continente africano fosse
um país singular, uma África única, de língua e cultura iorubá.
Os níveis seguintes - 3,4 e 5 - abordam a questão da linguagem popular,
do português regional da Bahia e da integração dos aportes africanos
no português brasileiro.
Que tipo de empréstimos ou, como
a sra. prefere chamar, de aportes lexicais são esses?
- Prefiro o termo aporte, politicamente correto, por se tratar do
resultado de uma apropriação - e não de um gesto de boa fé, que
seria o empréstimo - de vocábulos extraídos dos falares africanos.
Alguns já tão integrados ao português brasileiro que chegam a substituir
completamente o termo africano: caçula por benjamim, marimbondo
por vespa, cochilar por dormitar, corcunda por giba, e muitos outros.
Eles se encontram em todos os aspectos de nossas vidas, seja material
ou espiritual, e podem ser classificados em lexicais p.d., decalques
e híbridos. Por isso, no vocabulário afro-brasileiro, ao final do
meu livro, pode parecer estranho que nele esteja incluído vocábulos
do português ou que pareçam do português, como bata, despacho e
filho-de-santo. Além disso, ainda tratamos dos casos de polissemia,
a exemplo do termo xibungo, que de animal fantástico tomou no Brasil
o sentido de homossexual, e Pombajira, um inquice cujo comportamento
está longe de ser o daquela "pomba gira" brasileira.
Pode citar algumas palavras que
os nossos dicionários entendem como oriundas de fontes com as quais
a sra. não concorda?
- Ainda bem que só me pede algumas, pois não concordo com a maioria
delas, pois repetem os mesmos equívocos à exaustão, sem levar em
consideração os fatos históricos e as informações etnográficas.
É o caso de mocotó, dito e repetido como termo de origem indígena
- se nossos indígenas desconheciam o gado bovino!?! Forró, de forrobodó,
jamais poderia vir do inglês "for all". Será que Chiquinha Gonzaga,
em 1912, aprendeu essa palavra com os ingleses? E será que eles
conheciam também essa palavra banto, durante a Segunda Guerra Mundial,
ao compor a música para sua peça teatral Forrobodó? E cafuzo de
advir de "cara fusca" chega a ser anedótico quando o mesmo dicionário
diz que fusca é o nome popular do carro Volkswagen no Brasil; para
não falar de califom, sutiã, do francês, dado como de origem banto
só porque começa com a sílaba que lembra o prefixo ka, muito comum
em banto, além de outras tantas etimologias, algumas que chegam
a ser pornográficas, manipuladas por vocabularistas sem qualquer
formação na área de línguas. Não vou contar mais para aguçar a curiosidade
dos nossos leitores e dos meios de comunicação, que muitas vezes
acabam divulgando informações ridículas, por equivocadas. Ainda
mais grave é o que ocorre em programas educativos, como o caso de
um professor pernambucano ensinando aos alunos que o nome do engenho
onde foi criado Joaquim Nabuco, Massangana, do banto "grande rio",
vinha de "água de Gana", sem explicar sequer o que isso queria dizer.
Imperdoável.
Há uma tradição brasileira nos
estudos que a sra. desenvolve?
- Infelizmente não, por preconceito academicista em não admitir
que línguas de tradição oral, e de negros escravos, pudessem influenciar
uma língua de prestígio literário como a portuguesa. Há mais de
duas décadas tenho pregado no deserto, divulgando os resultados
da minha pesquisa e defendendo sempre o ponto de vista de que o
negro, no Brasil, adquiriu o português como segunda língua e foi
o responsável pela difusão da língua portuguesa em território brasileiro.
Estou feliz por ter, agora, o meu livro publicado com a chancela
da nossa Academia Brasileira de Letras. Isso significa dizer que
vamos reabrir o capítulo das questões em torno do português brasileiro
através de uma nova ótica de interpretação polêmica, a fim de retirar
a pá de cal com que se tentou enterrar este assunto até agora.
Já que a sra. trata também do
português que falamos, por que não dar ao livro o título de Falares
africanos no Brasil, em vez de Falares africanos na Bahia ?
- Já fui questionada sobre isso. Não quis parecer pretensiosa, mesmo
porque minha pesquisa foi feita na Bahia. Também não quero que entendam
como uma crise de baianidade de minha parte. Acontece que a Bahia
concentra a maior parte da população brasileira afro-descendente
- embora muitos não pareçam, como é o meu caso - e é reconhecidamente
o mais importante centro de irradiações de influências culturais
africanas no Brasil. Daí o subtítulo: Um vocabulário afro-brasileiro.
Se essa pesquisa fosse feita no Rio, Pernambuco, Goiás, Maranhão,
Minas Gerais, por exemplo, as conclusões a que chegamos provavelmente
seriam as mesmas. Como não pretendo parar por aí, já estou trabalhando
com os falares de comunidades negras brasileiras isoladas, esperando
que uma instituição, como a Palmares, se interesse pelo projeto.
Para finalizar, o que a sra.
espera da receptividade do seu livro?
- Como já disse, muito polêmica. É um livro que leva a repensar
o que foi escrito sobre o português brasileiro porque levanta a
questão de se legitimar línguas africanas no Brasil, para que o
negro deixe de ser tratado como personagem omisso e silente na história
e por ela omitido e silenciado. Espero poder trazer uma parcela
de contribuição na área dos estudos afro-brasileiros, que possa
abrir outros campos de pesquisa através de uma ótica diferente de
interpretação.
|