HUGH TREVOR-ROPER
Escritos entre 1956 e 1967, os nove ensaios de
A crise do século XVII – Religião, a Reforma
e mudança social são expressões coerentes
de um mesmo pensamento: têm em comum a preocupação
de identificar os fundamentos institucionais e intelectuais da compreensão
moderna do conceito de liberdade, da qual somos herdeiros e beneficiários.
Professor de história na Universidade de Oxford durante 23
anos, Hugh Trevor-Roper (1914-2003) analisa a Guerra Civil, a Restauração
e a Revolução Gloriosa na Inglaterra, uma época
em que a caça às bruxas foi um acontecimento central
não apenas do ponto de vista religioso como do político.
“A mania européia de bruxas nos séculos XVI
e XVII é um fenômeno surpreendente: uma permanente
advertência para aqueles que simplificariam os estágios
do progresso humano”, escreve.
Enveredando por discussões sobre religião
e mudanças sociais, Trevor-Roper demonstra que os momentos
em que a perseguição às feiticeiras foi mais
forte coincidiram, quase sempre, com períodos de pressão
puritana, como ocorreu no reinado de Elizabeth I e durante as guerras
civis na Inglaterra. Mas o mesmo fenômeno foi ainda mais radical
na Escócia e na Europa continental, daí a necessidade
de uma interpretação menos insular e mais abrangente
dos movimentos sociais e intelectuais da época para se entender
as raízes da crise geral – no governo, na sociedade
e nas idéias – que afetou a vida européia na
primeira metade do século XVII, resultando numa revolução
intelectual e social de dimensões inéditas.
Mesmo quando se dedica a temas especificamente
britânicos, como a Revolução Puritana e suas
conexões com a Revolução Industrial e Científica
na Inglaterra, Trevor-Roper mantém um olho no contexto europeu
da época, apontando mudanças sociais e desenvolvimentos
paralelos em diversos países. Sem medo das ortodoxias, ele
questiona, por exemplo, a tese weberiana – que se tornou quase
um dogma sociológico – de que o calvinismo criou a
força moral e intelectual do capitalismo emergente nos séculos
XVI e XVII; em outras palavras, de que o capitalismo precisou esperar
pelo calvinismo para conquistar o mundo, e de que a modernidade
é decorrência da secularização das idéias
calvinistas. Para o historiador inglês, a tese carece de fundamentação
histórica, como afirma no ensaio que abre este livro, "Religião,
a Reforma e mudança social". E volta ao tema em "As
origens religiosas do Iluminismo", onde analisa o calvinismo
como uma reação intelectual às guerras religiosas.
Em A crise do século XVII, que
o Liberty Fund disponibiliza agora ao leitor brasileiro em parceria
com a Topbooks, o autor investiga as transformações
da sociedade européia e suas implicações culturais
naquele período. Alguns ensaios refletem a influência
de historiadores franceses como Fernand Braudel e Marcel Bataillon,
que despertaram seu interesse pelos primórdios da modernidade
no continente, deslocando o foco da reflexão historiográfica
do campo da economia para o das idéias. Daí Trevor-Roper
acreditar numa concepção pluralista de progresso,
e rejeitar com veemência o determinismo de sistemas intelectuais
fechados como o materialismo histórico.
Seguidor de Edward Gibbon e fiel aos mestres
da grande tradição da historiografia inglesa –
Newman, Macaulay, Ruskin, Pater – Trevor-Roper foi um crítico
severo da fragilidade da argumentação de autores marxistas
como Lawrence Stone, R. H. Tawney e Christopher Hill, não
por uma questão ideológica, mas por considerar que
a integridade e a seriedade da própria atividade historiográfica
estavam ameaçadas pela influência de partidos ou seitas,
e por interpretações puramente materialistas. Combateu
a tendência à superespecialização dos
historiadores, defendendo pesquisas de maior abrangência,
e fez de sua pena uma ferramenta de análise moral e de crítica
a todas as formas de barbárie, não somente em seus
livros como também nos comentários em jornais e revistas
voltados para o grande público, o que o tornou reconhecido
além dos limites da comunidade acadêmica.
Autor de obra volumosa, Trevor-Roper escreveu,
entre outros, The Gentry: 1540-1640, The Rise of Christian Europe
e The Hermit of Peking, sobre a vida do nobre inglês Edmund
Backhouse. Ele voltaria a estudar o século XVII nos livros
The Plunder of the Arts in the Seventeenth Century e Princes
and Artists: Patronage and Ideology at Four Habsburg Courts: 1517-1633.
Publicou, ainda, um ensaio sobre os diários de Goebbels e
uma série de perfis de historiadores dos séculos XVIII
e XIX, como Gibbon, Macaulay, Carlyle e Burckhardt. Durante a Segunda
Guerra, trabalhou para a Inteligência britânica, e recebeu
de seus superiores a tarefa de redigir um relatório sobre
a morte de Hitler, já que Stalin fizera espalhar o boato
de que o líder nazista estaria vivo, e refugiado na Argentina.
O que inicialmente seria um documento burocrático se transformou
num dos mais influentes livros de história do século
XX: Os últimos dias de Hitler, uma análise
profunda da moralidade e do caráter do nazismo.
Trevor-Roper teve o prestígio abalado
em 1983, ao reconhecer como autênticos diários fraudados
de Hitler, mas continuou a escrever obras bem-recebidas por público
e crítica, como Catholics, Anglicans and Puritans,
de 1987. Após sua morte, aos 89 anos, foram editadas mais
duas: a biografia Europe's Physician: The various life of Theodore
de Mayerne e Letters from Oxford: Hugh Trevor-Roper to Bernard
Berenson, sua correspondência com o renomado crítico
de arte. “A história é uma interação
complexa e contínua de interesses, experiências e idéias,
bem como – na melancólica expressão de Gibbon
– o registro dos crimes, loucuras e infortúnios da
humanidade”, afirma Trevor-Roper no prefácio a este
livro. “Um volume de ensaios não pode pretender solucionar
os problemas de um século repleto deles. Ficarei satisfeito
se tiver aberto umas poucas brechas na parede divisória entre
passado e presente”.
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