UMA VIDA NÃO BASTA
Adriano Espínola
Poucos romances brasileiros atuais conseguem
já no primeiro parágrafo, de três linhas apenas,
capturar a atenção do leitor (“Apesar dos 65
anos de idade e da experiência acumulada, Aníbal Cavalcanti
se assustou com o que acabara de ouvir. Voltou a fita, e novamente
a voz do filho o apunhalou”). Se o personagem se prende assim,
de início, à voz gravada do filho, ouvindo-a repetidamente
a lhe revelar inesperado ódio, nós outros, leitores,
tomados de expectativa e tensão, nos sentimos de pronto fisgados
pela escrita do autor.
E isso numa ficção literária
é meio caminho andado. Em seu terceiro romance, Almir
Ghiaroni consegue, com mão de mestre, associar uma trama
policial a um drama existencial, envolvendo o bem-sucedido empresário
Aníbal Cavalcanti e seus dois filhos, Ricardo e Antônio.
Um quer destruí-lo, movimentando-se em várias direções
para conseguir seu intento; o outro, retido numa cama em estado
comatoso, termina por salvá-lo interiormente.
Vale ressaltar, ainda, a criação
de alguns personagens que a esses três se relacionam, dinamizando
a narrativa: Cristina, ex-namorada de Aníbal e mãe
de Antônio; o casal amigo Taddeo e Cecília; a mulher
Isabel e a filha adotiva Gabriela. Também admirável
é a composição do bicheiro Tito, em contato
com o inescrupuloso Ricardo.
Os sentimentos de vingança, raiva e ambição
material desenfreada ao lado da compaixão, da busca espiritual
e da serenidade mobilizam, em diferentes graus, tais personagens,
delineando tematicamente, a um só tempo, a mítica
batalha entre as forças do bem e do mal (incluindo aí
o antigo conflito entre pai e filho) e o desejo de transcendência
do homem numa história que tem perfil e andamento de thriller
cinematográfico.
Nesse sentido, merece destaque a notável
capacidade de visualização do espaço por parte
do escritor, o desenho das paisagens urbana e rural – representadas
pelo Rio de Janeiro e a região de Paraíba do Sul –
bem como dos ambientes internos. Não ficam atrás a
composição física dos personagens principais
e secundários e o domínio da temporalidade, quer na
reconstituição do passado, quer na condução
de suas ações no presente da narrativa. Os cortes,
closes, deslocamentos e rapidez das cenas e diálogos reforçam
o caráter fílmico do relato, servido ainda pelo ritmo
incisivo das frases e parágrafos curtos, já no plano
literário.
A história transcorre nos dias de hoje,
entre aquelas duas cidades. É plena de atualidade e verossimilhança,
social e psicológica, a moldar o comportamento de boa parte
dos personagens, no contexto de uma sociedade ferozmente competitiva
e financista. Em contrapartida, atitudes e desejos de despojamento,
espiritualidade e solidariedade se manifestam noutros personagens,
os quais acabam por transformar “o estrategista vitorioso
no mundo dos negócios”: o frio e calculista Aníbal.
Aqui, parece quase inevitável –
guardadas as proporções estilísticas e as forças
compositivas de cada um, inclusive ideológicas – a
aproximação desse protagonista ao Paulo Honório
de São Bernardo, romance de Graciliano Ramos. Ambos,
Aníbal e Paulo, são seres brutos, ambiciosos, mas
que, ao fim da narrativa, acabam por reencontrar sua perdida humanidade
depois de experimentar episódios trágicos.
Aí está outra grande e definitiva
qualidade de Uma vida não basta: o valor humanístico
que transmite. A força e a fé na vida. A crença
em que podemos ser melhores do que somos. E de que a arte, tal qual
este romance, com sua promessa de felicidade centrada na beleza
(como queria Stendhal), termina por humanizar o homem, moral e socialmente.
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