"PROSA POÉTICA", de Arthur
Rimbaud
Bruno Tolentino
Ao recomendar este Volume II do Rimbaud de Ivo
Barroso, meticuloso e monumental labor de toda uma vida, afugento
certa sombra de tristeza: o quanto se tornou raro entre nós
empresa deste porte e seriedade! Aos estertores finais de um de
seus períodos mais acabrunhantes, a vida do espírito
no Brasil continua repleta de homúnculos que não sabem
que não sabem javanês. Como é notório,
depois da “morte do verso”, a arte da tradução
de poesia – essa lição de Mestres da estatura
de um Machado, um Bandeira, um Abgar – tem sido arrastada
na sarjeta mental dos mais ralos exibicionismos, confundida à
mais apressada inépcia retórico-linguística.
Conseqüentemente, esta é uma obra
de poucos pares em nosso atual circo tradutório. Na primorosa
edição da Topbooks, o leitor encontrará todo
o contrário de certa endêmica modalidade nossa da febre
“traduziológica”. Não há falhas
de leitura, muito menos gaffes “transcriativas” nesta
exemplar conjunção de duas nobres artes: a de escrever
e a de re-escrever poesia. Aqui, Ivo Barroso, passé maître
na arte de passar décadas a entender primeiro para traduzir
depois, simplesmente (e magistralmente) apelle un chat un chat.
Logo, por mero contraste, implicitamente chama a cada um de nossos
Rollet un fripon...*
Étiemble observa que até mesmo
o mais dedicado leitor tem sempre algo a descobrir sobre um original
com a leitura de suas grandes traduções. Posso testemunhar
disso: minha redescoberta de Rimbaud deve muitíssimo às
repetidas leituras que tenho feito das recriações
de Ivo Barroso. Nisso estou em ótima companhia; com Didier
Lamaison, por exemplo, que há pouco nos dizia haver voltado
em profundidade ao seu Rimbaud da juventude precisamente ao compará-lo
com o que dele Ivo faz em vernáculo. Dito isso, temo que
estas paralelas (e não raro unidas) “alquimias do verbo”
arrisquem valer, a autor e a co-autor, o mesmo ressentimento conspiratório
que cerca outro de nossos raros grandes recriadores de poesia, aquele
Jorge Wanderley quase linchado por ter posto Dante Alighieri onde
Ivo Barroso vem há décadas pondo o voyant de Charleville:
na simbiose da mais elegante arte de nosso verso.
Mas não é tudo! Ao saudar a ressurreição
em nosso idioma desta obra capital da poesia maior do Ocidente,
no momento em que estabelecem definitiva residência em nossas
letras, pergunto-me quem se irá reconhecer nestas páginas.
Em nosso morno purgatoriozinho poético, já não
pergunto quelle âme est sans défault, mas sim
quem tem alma para ter defeitos... Onde andam nossos Rimbaud de
hoje? Que é feito do espírito de poesia ao qual devemos
um Cruz e Sousa, um José Albano, um Augusto dos Anjos e tantos
mais? Haverá ainda quem se inspire na devoção
de um Ivo Barroso e se importe em emulá-lo – e aos
Leopardi, aos Baudelaire, aos Hölderlin, aos Celan, às
Dickinson, aos Mandelstam, aos Radiguet, aos Artaud?
Porque – Ô saisons, Ô châteaux!
– quem não sabe, hoje, que nosso jovem poeta aspira
mesmo é à mais velha profissão do mundo? Assistimos
a um fenômeno que faria explodir de engulho o autor das Illuminations:
perambula entre nós a mais estranha das aberrações,
o jovem poeta-cortesão. Com tantas ávidas bolsinhas
rodando em torno de tantas polpudas Bolsas, dir-se-ia que nosso
gênio poético atual não pertence mais aos maudits,
mas aos garotos de programa literário... E qual deles faria
o que Ivo fez: passaria uma temporada no inferno, ou se daria conta
de que "a verdadeira vida está ausente, e livre seja
esse infortúnio?"
O adolescente francês cuja prose de
diamant revive em português sua inexaurível juvência,
sob os longos cuidados apaixonados de um verdadeiro poeta-tradutor,
morreria de tédio em nossa atual Etiópia poética.
Pois este livro, que uma alma atormentada arrancou das vísceras
e um intelecto privilegiado pôs ao alcance de todos os que
sabem que não sabem francês, dificilmente irá
queimar as pestanas de nossos poetas-candidatos a isso e àquilo.
Et pourtant... Se a Providência for condescendente
conosco, fará com que alguém, em alguma parte do país,
leia este formidável trabalho com a mesma agônica atenção
que autor (há 125 anos) e co-autor (durante várias
décadas) puseram em sua fatura. Então, quem sabe,
talvez venham a acontecer “cousas futuras”...
Como andam as “cousas”, tanto vale
o que dizem as lousas: aqui faz, requiescat, ci-gît.
Até que se impregnem das artes combinadas de Arthur Rimbaud
e Ivo Barroso, nossos vates seguirão trocando o Verbo pelas
verbas, e fazendo de boy-behind-the-door um boi-berrando-de-dor.
E haja boi-tempo, porque o ôba-ôba anda alegre, e
la nave và. Mas creia-me, leitor: os autores jumelados
desta renovada obra-prima da poesia culta, profunda, metafísica
e universal não têm absolutamente nada a ver com isso.
* "J' appelle un chat un chat, et Rolet un fripon" (Eu
chamo um gato de gato, e Rolet de velhaco), trecho de uma das sátiras
de Nicolas Boileau (1636-1711), onde há uma referência
a Charles Rolet, Procurador no Parlamento de Paris, condenado ao
desterro em 1681, cujo nome virou sinônimo de patife.
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