OS DEVERES DO HOMEM E DO CIDADÃO
Publicado em latim em 1673, Os deveres do
homem e do cidadão de acordo com as leis do direito natural
foi um dos primeiros textos a sugerir que o direito natural –
isto é, as leis derivadas da sociabilidade no Estado civil
– se assentava nas convenções sociais, e não
em valores transcendentes. Seguindo linhagem iniciada por Hugo Grotius
e Thomas Hobbes, seu autor, Samuel Pufendorf (1632-1694), afirmava
que apenas um governo civil forte poderia garantir a segurança
e a paz social, promovendo assim a deslegitimização
religiosa e a laicização do Estado. Ele considerava
a paz social, e não a perfeição moral, como
a principal meta do direito natural, o que representou mudança
radical na interpretação do Estado, da ética
e das instituições políticas. Sua obra veio,
assim, a exercer influência decisiva na formação
teórica, política e moral de gerações,
chegando a inspirar os princípios da Constituição
americana de 1787.
Este livro que agora chega ao Brasil, numa parceria
entre a Topbooks e o Liberty Fund, é a condensação
de um monumental tratado sobre direito natural que Pufendorf publicara
em 1672, o De jure naturae et gentium. Professor da Universidade
de Heidelberg, na nova obra ele se dirige, sobretudo, aos estudantes
que potencialmente viriam a se tornar ministros, professores ou
funcionários públicos, e deveriam lidar com questões
relativas à soberania e às novas relações
entre Estado e Igreja estabelecidas na Europa após as guerras
civis religiosas. Por ter presenciado os horrores da Guerra dos
Trinta Anos, Pufendorf se tornou um vigoroso defensor de sociedades
multiconfessionais, dissociando os deveres do cidadão das
obrigações morais do cristão. Para ele, as
leis só devem ser aplicadas à conduta externa do homem,
deixando livre sua moralidade interior.
Traduzido para o inglês por Andrew Tooke
em 1691, Os deveres do homem e do cidadão teve sucessivas
reedições até 1735, nas quais editores anônimos
incorporaram farto material editorial da tradução
francesa de Jean Barbeyrac, outra testemunha das perseguições
religiosas. Essas alterações pretendiam aparar as
arestas de uma teoria política gestada no ambiente absolutista
alemão, adaptando-a ao contexto parlamentarista inglês.
Com isso, o pensamento de Pufendorf foi remodelado para atenuar
a descontinuidade que ele estabelecera entre direitos civis e moralidade
religiosa. Mesmo assim, a obra se destaca por conceder ao Estado
soberano uma legitimidade secular inédita, como uma instituição
criada por homens com o fim de alcançar a paz social, mas
com o direito absoluto de determinar e impor as medidas mais adequadas
para se atingir esse objetivo.
Embora seus escritos não sejam limitados
aos tratados de direito, foi sobretudo neste campo que Pufendorf
se tornou conhecido. Assim como Grotius, ele considera a possibilidade
de estabelecer uma relação entre o direito e a aritmética:
os princípios de direito natural seriam de uma evidência
perfeita, como axiomas da matemática; por isso, é
fundamental estabelecer princípios para a dedução
do direito natural. Ao afirmar que estes princípios podem
ser retirados tanto da experiência empírica quanto
da tradição consagrada, Pufendorf contribui para aprofundar
o movimento de secularização do direito.
“A regra fundamental do direito natural”,
escreveu, “é esta: todos têm o dever de preservar
a comunidade e de servir ao todo social, tão bem quanto possível”.
Para obedecer a esse imperativo (“tu deves”), é
preciso levar em conta três grupos de deveres: primeiro, para
com Deus, já que sem religiosidade o homem não seria
sociável; segundo, o dever do homem para consigo mesmo, que
assenta tanto na religião quanto na vida social; e, por fim,
para com o outro, a quem não se pode prejudicar, a quem é
preciso considerar igual e a quem devemos ser úteis tanto
quanto possível.
Da obrigação da sociabilidade,
Pufendorf distingue neste livro duas ordens de princípios:
os absolutos e os hipotéticos. Os primeiros obrigam a todos
os homens, na condição de membros do gênero
humano, independentemente de suas vontades: são originários
de Deus. Já os outros dependem das determinações
humanas e são instituídos, por exemplo, pelos governos
de cada nação. Embora dependentes da vontade do homem,
estas obrigações são tão importantes
quanto as outras; elas serviriam para formar leis que disciplinem
a sociedade.
Nascido no ducado da Saxônia e filho de
um pastor luterano, Samuel Pufendorf também estava destinado
ao ministério religioso, e foi enviado à Universidade
de Leipzig para cursar Teologia. Mas o ensino estreito e dogmático
o repugnou, levando-o a trocar a Teologia pelo Direito Público.
Pouco depois partiu para a Universidade de Iena, onde se tornou
grande amigo do matemático Erhard Weigel, que o influenciou
a aprofundar-se na leitura de Hugo Grotius, Thomas Hobbes e René
Descartes.
Após lecionar em diversas universidades,
como Heidelberg, na Alemanha, e Lund, na Suécia, e trabalhar
como tutor na casa do embaixador sueco na Dinamarca (1658-1659),
nos últimos anos de vida Pufendorf completou sua carreira
em postos como historiador da corte, na Suécia e em Brandeburgo.
Nesse período, voltou a escrever textos importantes sobre
o sistema europeu de Estado, sobre a monarquia e sobre o lugar da
religião na vida civil. Poucos meses antes de morrer ele
ganhou título de nobreza, e se tornou Barão Samuel
von Pufendorf.
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