O OUTRO LADO DA LUA
Alvaro da Costa e Silva
O outro lado da lua é uma novela em que se nota a escrita flexível e precisa e a maturidade no trato da linguagem, qualidades já apontadas pelo crítico Alfredo Bosi em relação ao romance A sombra do meio-dia (Topbooks, 2003), com o qual Sérgio Danese marcou sua estreia como ficcionista. Praticada ao longo dos séculos por numerosos ficcionistas do passado e do presente, em todas as principais literaturas do mundo, a novela é tema de debate quase interminável entre os especialistas quanto a sua conceituação. Guarda muito da intensidade de atmosfera e da contenção descritiva do conto, ao mesmo tempo em que se beneficia da mais ampla espessura e ação dramática do romance.
O outro lado da lua é também uma sátira. A narrativa em primeira pessoa – mais um dos acertos do autor, que, machadianamente, às vezes conversa com o leitor – surpreende um publicitário em momento crítico de sua vida pessoal e profissional. Não sabemos o nome de quem conta a história nem a cidade em que os acontecimentos se dão (minha aposta é São Paulo), mas logo descobrimos que ele é muito engraçado e está na pior. A ex-mulher o leva aos tribunais. Até então bem-sucedido na profissão, perde o emprego. Os amigos, ou melhor, seu único amigo não parece nada confiável.
Mesmo enrolado e sabendo que chegou a um ponto sem volta, que exige mudança de rumos, o protagonista não perde o humor, o qual se manifesta no curioso hábito de reparar nas muletas de linguagem. Implica – prenhe de razão – com quem vive dizendo “veja você”, “diga-se de passagem”, “enfim”, “então”, “é o que eu acho”, “todo mundo”, “outra alternativa” etc. Nas entrelinhas da galhofa, a ficção oferece um manual de bom estilo.
O narrador, por si só, é uma trama de citações e referências culturais, que vão dos prelúdios e sonatas de Bach e Beethoven às obras mais famosas de Juan Rulfo ou Willian Styron. No auge do desvio, nosso (anti) herói quase tropeça numa criatura pequena mas parruda, branca, de patinhas curtas, com orelhas pontudas e em pé, uma espécie de saiote na parte de baixo da pelagem, o focinho preto como carvão, a cara cheia “como se o bicho tivesse tido originalmente umas suíças à Tio Patinhas”. Um adorável terrier.
É quando a novela ganha maior dimensão e se filia ao que podemos chamar de “literatura canina”, formando ao lado de outros exemplos de inegável pedigree: a história de Argos, o cão de Ulisses; “Novela e colóquio que houve entre Cipião e Berganza”, de Miguel de Cervantes; “Tobias Mindernickel”, de Thomas Mann; “A dama do cachorrinho”, de Anton Tchekhov; “Buck”, de Jack London; “Memórias de um cão amarelo”, de O. Henry; e, não por último, “Miss Dollar”, de Machado de Assis.
Sérgio Danese nos mostra como precisamos do afeto e da generosidade dos cães – e eis apenas uma das surpresas desse livro ágil e bem-humorado. |