O FETICHISMO DO CONCEITO – LIMITES
DO CONHECIMENTO TEÓRICO NA INVESTIGAÇÃO SOCIAL
Renan Springer de Freitas
Toda investigação científica
tende a ocorrer nos marcos de um referencial teórico particular
que, para merecer esse nome, precisa dispor de um quadro articulado
de conceitos inserido em um conjunto específico de leis.
Não satisfeita essa condição, não se
pode afirmar que se produziu, a respeito do fenômeno investigado,
um conhecimento especial, qualitativamente distinto daquele que
seria produzido apenas com a ajuda das generalizações
e concepções assentes no conhecimento de senso comum.
Considere-se, por exemplo, um fenômeno
como a “especiação alopátrica”,
isto é, o surgimento de novas espécies quando há
isolamento geográfico. No plano do senso comum não
é sequer possível conceber a existência desse
fenômeno. Somente um salto para outro plano de conhecimento
pode nos abrir o acesso a ele, e este salto se deu através
da teoria darwiniana da evolução, na medida em que
esta logrou estabelecer a seguinte lei: “as populações
isoladas se diferenciam adquirindo distintas variações
(mutações) e alterando frequências alélicas
por deriva ou seleção natural até que ocorra
isolamento reprodutivo, de maneira que, se estes grupos voltarem
a viver em Simpatria, não serão ‘compatíveis’
reprodutivamente”. Nessa lei estão inseridos pelo menos
oito conceitos: “população”, “mutação
genética”, “frequência alélica”,
“deriva genética”, “seleção
natural”, “isolamento reprodutivo”, “Simpatria”
e “compatibilidade reprodutiva”.
Suponha-se, agora, que a Biologia, por alguma
razão misteriosa, dispusesse de todos esses conceitos sem,
entretanto, contar com nada que se assemelhasse à lei acima
mencionada. Nesse caso, tudo viraria de ponta-cabeça. Ficaria,
de fato, difícil imaginar o que seria uma investigação
teoricamente orientada do fenômeno biológico em questão,
pois a teoria darwiniana da evolução já não
poderia ser identificada como uma teoria propriamente dita, e não
faria sentido, em decorrência disso, utilizá-la como
base teórica da pesquisa em biologia.
A contribuição do presente livro
reside, a meu ver, em mostrar que não é outra a situação
das ciências sociais hoje: nelas proliferam quadros conceituais
sem que, em contrapartida, se tenha logrado estabelecer uma única
lei acolhida sem maiores discussões filosóficas pelo
conjunto dos investigadores sociais. Na ausência de um corpo
de leis de tal natureza, nas quais os conceitos sociológicos
possam se inserir, eles não podem viabilizar explicações
qualitativamente distintas daquelas cuja “base teórica”
consiste tão somente nas melhores generalizações
do chamado conhecimento de senso comum.
Refiro-me, fundamentalmente, às explicações
encontradas na vida cotidiana, na literatura realista e na boa historiografia.
Luís de Gusmão demonstra com exemplos persuasivos
que a insistência em elevar um quadro conceitual particular,
não raro acolhido por grupos restritos de investigadores,
à condição de “referencial teórico”
obrigatório da pesquisa social, longe de conduzir a uma ruptura
com o conhecimento de senso comum, tem se revelado tão somente
a estrada real para ilações dedutivas a partir de
simples conteúdos conceituais. Eu próprio, inspirado
no argumento de Luís de Gusmão, aventurei-me a discutir
em trabalhos recentes o modo como Weber incorreu em inferências
fantasiosas a respeito do comportamento dos judeus ao se permitir
deduzir esse comportamento de conceitos não inseridos em
qualquer lei sociológica mais geral.
Para finalizar, um registro etnográfico:
como professor de sociologia há 25 anos, pude testemunhar,
inúmeras vezes, os danos causados à pesquisa empírica
pelo anseio de colegas e estudantes por algum “marco teórico
de referência”. Que possa o presente livro ajudar gerações
sucessivas a se livrar dessa ilusão teoricista.
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