O BRASIL INEVITÁVEL: ÉTICA, MESTIÇAGEM E BOROGODÓ
Aqui está um livro que vai dar o que falar. Uma viagem densa, ousada e inovadora sobre o Brasil e a gente brasileira, dos dias coloniais aos dias de hoje. São textos de natureza histórico-antropológica, escritos sem as inibições acadêmicas do passado recente – e sem cair no conto do vigário dos cultural studies ou derrapar na pista das alienações “identitárias”.
Para dar um exemplo, MÉRCIO GOMES encara com lucidez a questão central da mestiçagem, explodindo o estereótipo vigente. Gilberto Freyre reduzia o fenômeno — numa postura insustentável que, paradoxalmente, se converteu em dogma das ciências sociais e dos movimentos negros – dizendo que a mestiçagem foi coisa de senhores brancos estuprando suas escravas.
Agora, Mércio coloca tudo no lugar, sublinhando que a maior parte da mestiçagem brasileira se deu, na verdade, entre índios e pretos — na periferia pobre das vilas e cidades, em comunidades pesqueiras, nas fazendas e engenhos, nos múltiplos caminhos do povoamento do país. E que, a partir daí, a mestiçagem se expandiu mesmo foi entre os próprios mestiços, intercursos sexuais livres em meio a uma gente já misturada.
Aqui saberemos que os brasileiros têm moral e ética, ainda que nada seja tão translúcido como se quer e se pretende. Onde está nossa moral, de onde vêm as injunções éticas? Como se fortalece uma ética em nosso país? É um tema que nos toca profundamente, a cada dia, e Mércio não teme abrir essa caixa de pandora e deixar os diabinhos passearem pelo nosso cotidiano e mexerem com a nossa alma. Há salvação à vista.
Outro ponto alto (e novo), em que o autor vai além de seu mestre Darcy, está no forte ressalte dado ao desempenho do índio na configuração do Brasil e de nossa cultura de base. O índio, que sempre aparece em nossa historiografia como o ser extinto ou o ser subjugado, o ser preguiçoso, aqui desponta como aquele que teceu as bases de uma nova cultura, abrindo nova paisagem para o negro, para o branco e para toda a prodigiosa mestiçagem que aqui se constituiu.
São muitos os temas do livro e o espaço é pouco. Logo, para encurtar conversa, digo que este é um livro que deve ser lido imediatamente — com rigor e carinho — por cada um de nós, brasileiros que desejamos entender sempre mais o Brasil, que não podemos ter medo de encarar nossos problemas e saber que há soluções para tudo.
Neste livro aprendemos que precisamos nos afirmar como cultura mestiça, com base moral, com problemas éticos e com desejo de beleza e transcendência. O Brasil é inevitável porque o que ele foi é o que foi, e não poderia ter sido diferente, e não é pouca coisa e não se precisa lamentar. O que é e o que será cabe a nós definir a partir de agora. Enfim, cabe a nós nos conscientizarmos do que somos — e do que podemos ser — a partir de uma visão que engloba aspectos conservadores, liberais, nativistas e utópicos.
Nós somos cada um desses aspectos e também todos eles juntos, misturados e transcendidos.
Ao final, para que isso venha a acontecer, como diz Mércio, é preciso construir um espaço de solidariedade “para com o Outro: o outro humano, o outro natureza, o outro mistério da vida”.
Antonio Risério
Que livro sensacional! Ainda estou tentando tomar fôlego ao final dessa leitura que mais pareceu uma volta de montanha-russa. O BRASIL INEVITÁVEL: ÉTICA, MESTIÇAGEM E BOROGODÓ me tocou como um diálogo pessoal sobre tudo que já pensei e conversei com amigos nesses 26 anos em que vivo me achegando ao Brasil. Mércio, você me fez reconsiderar heróis brasileiros que eu pensava conhecer, e me mandou descobrir outros que tinha deixado de lado injustamente (José Bonifácio subiu ao topo de minha lista de leitura!). Tem surpresas a cada página, mas, acima de tudo, a envergadura do livro oferece uma recompensa inesperada. Você mergulhou nas profundezas do lado escuro do Brasil com tanta energia – e às vezes com tanta raiva – que me deixou na expectativa de que o livro terminaria entre o estridente e o elegíaco, quando ao final ele suavemente se abre para um novo e inesperado horizonte.
O mundo que você descortina através de uma tessitura histórica, filosófica, antropológica e econômica é vasto e caudaloso, e ao mesmo tempo tão rico em detalhes da vida cotidiana. As transições são bruscas e inesperadas, o que me leva a pensar que cada leitor vai admirar – ora mais, ora menos – capítulos e temas diferentes. Pessoalmente, gostei muito das descrições antropológicas dos gestos, atitudes e situações cotidianas. Alguns leitores certamente apreciarão outras perspectivas do livro, pois ele oferece muito.
Sua intensa busca pelas raízes étnicas do Brasil o leva a territórios assaz melindrosos, o que torna o livro mais potente e escancarado. Todo mundo terá ouvido e lido sobre os escândalos de corrupção e sobre a fragilidade econômica e política do Estado brasileiro, mas ninguém terá pensado sobre de onde vem tudo isso, e como o “momento fundante” continua a exercer sua potencialidade nas relações entre classes, raças, territórios e culturas ainda hoje.
O Brasil emerge mais potente, sobretudo nos dois capítulos finais. O grande panorama que você traça é muito atraente e edificante.
Paul Heritage
Professor de Teatro Shakespeariano
Universidade de Londres /Queen Mary
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