NA SOMBRA DO HERÓI
Ivan Junqueira (da Academia Brasileira
de Letras)
Agilidade narrativa, extrema viveza dos diálogos,
consistência e cromatismo das personagens, linguagem ficcional
concisa e de invulgar correção, humor, pleno domínio
dos meios de expressão e uma história cujos nós
dramáticos levam o leitor a não despegar os olhos
do texto por um só instante – o que pedir mais, afinal,
da escritora que apenas estreia, da romancista que, após
sua longa e sólida trajetória de pianista internacional,
soube aguardar à espera da hora certa de se apresentar diante
do público? Refiro-me aqui a Gilda
Oswaldo Cruz e a este seu livro, na verdade uma espécie
de saga à clef da família a que pertence a
autora.
Dividido em duas partes distintas – uma,
com capitulação em romano, que nos remete às
origens da família; outra, em arábico, que se ocupa
de sua mais recente contemporaneidade, até fins da década
de 1940 –, o romance nos dá um dos mais notáveis
exemplos de arqueologia familiar de que tem notícia a atual
ficção em língua portuguesa. Nesse sentido,
revela-se a autora também uma soberba memorialista, não
fora a sua consabida – e disso dou testemunho – paixão
pela obra de Proust, tal a percebi quando nos conhecemos no fim
dos anos 50.
Curiosamente, entretanto, é quase imperceptível
a influência do grande escritor francês em NA SOMBRA
DO HERÓI. E se recorrêssemos aqui àquela
sábia distinção feita por José Lins
do Rego entre prosadores “gordos” e “magros”,
seria provavelmente mais justo incluí-la entre os primeiros,
não tanto em razão da linguagem ou do estilo, que
nela são austeros, mas antes do vasto e polimórfico
painel romanesco que nos descortina, o que poderia levar a crítica
a cogitar desses “gordos” geniais que foram Balzac,
Dickens ou Victor Hugo. Há algo deles, sim, em Gilda Oswaldo
Cruz, muito embora, para além deles, o que perdura, afinal,
seja apenas ela.
Cumpre alertar, entretanto, que o memorialismo
a que aludimos (e recorde-se aqui, muito a propósito, a epígrafe
de Strindberg escolhida pela escritora: “Pensava saber, mas
apenas me lembrava”), se, de um lado, resgata admiravelmente
as figuras de tias, irmãs, primas, cunhados e cunhadas, avôs
e avós, desde os distantes tempos do patriarca português
da família, de outro, e sobretudo, está a serviço
da recuperação de uma imagem de pai, Conrado.
Há como uma obsessão por recompor-lhe
os passos, erráticos, impulsivos, imprevisíveis. E
o surpreendente resgate do caráter insubordinado e do perfil
psicológico desse pai, assim como dos traços europeus
da governanta Lotte – uma das mais pujantes personagens femininas
de nossa ficção contemporânea –, dão
bem a medida do talento de Gilda Oswaldo Cruz, que, para a nossa
fruição de leitores, trocou momentaneamente as teclas
pelas letras, contemplando-nos com um livro vigoroso e opulento
mas ao qual não faltam elegância, wit e fluidez
narrativa. Numa palavra, um romance que veio para ficar.
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