MOZART NÃO TINHA PLAYBACK
Titular de um dos mais poderosos escritórios de advocacia do país, renomado professor de Direito e autor de prolífica obra jurídica, Sergio Bermudes já foi pago com rapadura pela mãe de um rapaz que não tinha dinheiro para bancar sua defesa. E com sonhos recheados de camarão feitos por uma cliente desalojada de sua casa.
Trata-se, portanto, de um conhecedor de múltiplas realidades e facetas da vida, o que está devidamente comprovado neste volume de 38 crônicas e oito contos, numa eclética amostra de sua produção literária – e alta, para quem aqui se intitula um “jornalista amador” (página 31). Mas entenda-se: em grande parte, esses textos foram publicados em veículos da imprensa, nos quais não só passou pelos crivos profissionais como deixou sua marca de homem de letras. E artes. O que se evidencia em três casos exemplares, às páginas 19 (“Pinturas”), 63 (“Os músicos”) e 72 (“Mozart não tinha playback”).
Dono de uma escrita escorreita, o Sergio Bermudes cronista filia-se ao cânone do gênero. Sua linhagem principia em quem, com notas amenas e toques de ironia, lhe deu um perene status literário, e que não é outro senão o imortal “bruxo do Cosme Velho”, reverenciado à página 41 (“Vaidades”) e outras. E não faltarão referências basilares a Rachel de Queiroz (“Romancista ao norte, ao sul”, página 49) e Rubem Braga – este por todos os motivos e mais um: ser seu conterrâneo de Cachoeiro de Itapemirim, de onde o “sabiá da crônica” partiu para o infinito, ou seja, para o seu lugar definitivo na literatura, chegando a figurar entre os melhores contistas brasileiros do século XX, ele que, na maior simplicidade, sempre abordou os assuntos do dia a dia sem nunca chamar de conto a nada que escreveu.
Sem dúvida, o velho Braga é uma referência para o também capixaba Sergio Bermudes, que passeia por crônicas e contos variando de temas, cenários, reminiscências, leituras e circunstâncias, entre situações do arcaico mundo interiorano ao transe cosmopolita, tudo marcado por observações perspicazes, sob a ótica de um erudito com os ouvidos afinados pelos usos e costumes populares. Por vezes ele conta um conto como quem narra um causo. Em outras, desenvolve tramas que dariam um filme, como em “A descoberta no parque” (página 197). Que thriller!
Antônio Torres |