ESTA POESIA E MAIS OUTRA
Em Esta poesia e mais outra Felipe
Fortuna reúne uma série de textos de crítica
literária autêntica. Isso, como é notório,
vinha há algum tempo tornando-se cada vez mais raro no Brasil.
Em parte, esse fato se deve sem dúvida à persistência
entre nós do sistema de compadrio herdado da sociedade cordial
e patriarcal, em que, como observa o próprio Fortuna, “muitos
poetas enviam elogios a seus pares, na busca de elogios para si
mesmos”. Mas creio que, de maneira geral, essa postura basicamente
acrítica considerou-se legitimada pelo relativismo vulgar
característico da virada do século. Ora, sem pejo
de fazer juízos valorativos e com a disposição
de defender os juízos que faz, este livro rompe com tal atitude.
Mas talvez o maior mérito de Esta poesia
e mais outra seja o de provocar o leitor a refletir sobre os
mais variados e estimulantes temas literários. Leiam-se,
por exemplo, suas observações sobre a contradição
entre, por um lado, o projeto totalizante e unitário do Livro
de Mallarmé e, por outro, a tendência fragmentária
de grande parte da poesia moderna; sua descrição de
Joaquim Cardozo como um “herói discreto e silencioso
na poesia de João Cabral”; sua excursão até
as origens medievais da canção “Coração
Materno”, de Vicente Celestino; suas considerações
sobre o enigma de Louise Labé, poeta do século XVI
a quem se atribui uma obra respeitável (traduzida, aliás,
pelo próprio Fortuna), mas que, pelo menos para um especialista,
jamais tenha passado de personagem fictício; sua deliciosa
descrição do cabotinismo do livro de memórias
do famoso ficcionista e crítico francês Philippe Sollers;
etc.
Não temendo a polêmica, é
claro que Fortuna não espera que todos os leitores concordem
com tudo o que afirma. Eu mesmo discordo frontalmente de alguns
de seus juízos. Ao contrário dele, considero, por
exemplo, absolutamente admiráveis os livros de poemas Lar,
de Armando Freitas Filho, e Tarde, de Paulo Henriques Britto.
Contudo, discordar de algumas das opiniões de um autor está
longe de ser razão suficiente para não o ler. Um ponto
de vista contrário ao meu, desde que me estimule a pensar
melhor, é sempre bem-vindo: às vezes para me fazer
mudar de opinião; mas às vezes, como no caso das críticas
aos livros supracitados, para me fazer confirmar – porém
de modo necessariamente mais meditado e profundo – aquilo
que eu basicamente já pensava.
Em suma, parece-me claro que este livro invulgarmente
perspicaz, erudito e espirituoso traz uma contribuição
preciosa à nossa reflexão sobre a literatura e, em
particular, sobre a poesia.
Antonio Cicero
Felipe Fortuna é poeta, ensaísta
e diplomata. Estreou com o livro de poemas Ou Vice-Versa,
em 1986, ao qual se seguiram Atrito (1992), Estante
(1997) e Em Seu Lugar (2005). Traduziu a obra integral da
poeta francesa Louise Labé, publicada no volume Louise
Labé - Amor e Loucura (1995). Organizou, juntamente com
Antonio Carlos Secchin, uma antologia em língua espanhola
da poesia e da prosa de João Cabral de Melo, editada pela
Biblioteca Ayacucho. Vem mantendo marcante presença na crítica
literária, e até 2009 assinava coluna no suplemento
“Ideias & Livros” do Jornal do Brasil. Já
reuniu seus ensaios sobre literatura em A escola da sedução
(1991) e A próxima leitura (2002), além de
Visibilidade (2000), dedicado a temas do jornalismo cultural.
Como diplomata, trabalhou nas embaixadas do Brasil em Londres, Caracas
e Moscou.
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