DOUTOR FAUSTO
Rosa Dias e Júlio Bressane
Prólogo do autor
Está o Poeta no seu camarim, passeando
e falando consigo mesmo,
antes de compor o livro.
Tornai-me a aparecer, entes imaginários,
que me enchíeis outrora os olhos visionários!
Poder-vos-ei fixar?...Tenho inda coração
capaz de se render à vossa sedução?...
Chegam... que densa turba! Envolvem-me... Não posso
furtar-me ao seu triunfo. Eis-me, Visões, sou vosso”.
Primeiro Fausto, tradução
de Antonio Feliciano de Castilho
Muitos Faustos se acumulam nos domínios
da criação literária e artística: os
dois Faustos de Goethe, o Mon Faust de Valéry, o Doktor
Faustus de Thomas Mann, o Primeiro Fausto de Fernando
Pessoa. Quando se supõe que nada mais haverá para
ser dito sobre esse mito europeu, surge mais um romance, revela-se
ainda uma faceta não explorada dessa personalidade. O destino
das grandes criações artísticas é ser
fonte perene.
Quando se lê Doutor Fausto de António
Vieira, a consciência de se estar lendo uma obra-prima soma-se
a outra sensação mais sutil, uma espécie de
laço com o autor que se desvenda tão inteiramente
mesmo quando parece ocultar-se. Igualmente é impossível
saber até que ponto estamos lendo uma história inventada
ou convidados a conhecer e partilhar os segredos de uma sensibilidade.
Jogo singular entre o vivido e o ficcionado. Assim, o autor descreve,
de modo sempre engenhoso e pleno de interesse, a simbiose que leva
a vida a se transformar em romance, as elaborações
que se transmudam em personagem e constroem um romance de literatura
sobre a literatura, uma espécie de prolongamento e de aprofundamento
da escritura.
O romance é elaborado com firmeza. Leva
e eleva a língua portuguesa a um exercício arrojado
por uma paisagem que não lhe é habitual, mas é
paisagem sua. Num ágil ir e vir entre fatos da vida e uma
reconstituição da tenacidade de um pesquisador apaixonado,
página a página, o leitor convive com Fausto, médico
e filósofo, homem irascível e artista requintado.
Doutor Fausto usa uma técnica novelística
ousada, texto filosófico escrito pela mediação
do foco das metáforas, elipses e hipérboles, do romance
em que os conceitos não estão engaiolados nos argumentos,
hipóteses, proposições e teses, mas no jogo-devir
poético das palavras Os conceitos seguem carreados pelo ritmo,
pelo puxar das frases lapidadas, pela sonoridade da língua,
onde todos os temas se relacionam, tudo é realidade, tudo
é símbolo.
Para construir esse romance filosófico,
Vieira foi buscar inspiração em grandes figuras da
área, entre as quais Montaigne, Husserl, Nietzsche. Tanto
os percursos de Fausto como os rumos da trama são guiados
pela ideia da fenomenologia. O porquê do Ser total arrasta
Fausto para a filosofia. “A filosofia é a arte de perguntar
sem complacências!”, diz ele. Cedo reconheceu Fausto
o labirinto das questões, das dúvidas.
Personagens reais, como o filósofo Eugen
Fink, se misturam com criações imaginárias.
Fausto, discípulo de Husserl, formado na disciplina e no
estilo severo da filosofia alemã, faz conciliar a fenomenologia
da memória e o proliferar da palavra de ficção.
Montaigne ensina Fausto a pensar, a escrever e a entender a natureza
dos humanos, “de como olhá-los de fora e de cima, e
tentar entendê-los de dentro”. Fausto lê, também,
os textos póstumos de Nietzsche e os fragmentos provindos
da Antiguidade. Atravessa, com Eugen Fink, Engadine, e detém-se
em Sils Maria, a pequena aldeia entre dois lagos, cercada de altos
picos, onde Nietzsche recebeu a revelação do eterno
retorno. “Tudo é jogo: tudo é, pois, permitido”,
escreve Vieira, citando Nietzsche.
Com Fink, Fausto conversa sobre o jogo enquanto
motor das coisas e símbolo das formas. A ideia da fenomenologia,
o pensamento do jogo como motor central e o polemos dos pensadores
da Grécia antiga recortam em luz todo seu pensamento. Um
jogo cósmico, que a cada momento se inventa, se destrói
e se refaz, “como um caleidoscópio a erguer novas e
deslumbrantes imagens sobre as ruínas anteriores”.
Um jogo do mundo inquietante por sua beleza e falta de sentido.
Pensamento inclinado pela vertente literária:
a reflexão sobre a condição humana e a evidência
do caminho absurdo tomado pela sociedade, a integração
e a desintegração da natureza, a contemplação
do universo e o amor como discurso são os temas que se desenrolam
nesse Fausto, filósofo e médico, que conversa com
o “Espírito da Terra” e vê com lentes de
aumento a singularidade dos seres, dos seus segredos selados e da
presença enigmática do Ser no mundo.
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