CORRESPONDÊNCIA
Ferreira Gullar
Este livro de cartas de Arthur Rimbaud
me fez regressar às indagações que me assaltaram
quando, jovem ainda, tomei conhecimento da poesia desse poeta-menino
e de sua vida atordoante.
Rimbaud reuniu todos os ingredientes capazes
de despertar a admiração e a perplexidade de seus
contemporâneos, particularmente daqueles que com ele conviveram
nos primeiros três anos de sua intermitente estadia em Paris.
Um garoto de dezesseis anos, chegado da provinciana Charleville,
trazendo nos bolsos alguns poemas de surpreendente beleza e originalidade,
que violavam os conceitos estéticos, religiosos e morais
da época, só podia ser visto como um gênio.
Acrescentemos a isso dois olhos azuis de inquietante transparência,
que pareciam arrastar quem os fitasse ao paraíso ou ao inferno.
É que aquele menino, cujos poemas
revelavam um lado deslumbrante e perturbador da realidade, comportava-se
como um pequeno demônio, que se exibia nu à janela
da casa do amigo que o hospedara, levando os vizinhos a chamar a
polícia; que se deitava, vestido de roupa amarfanhada e chapéu,
no jardim de outro amigo, a fumar haxixe num enorme cachimbo para
chocar os transeuntes; ou, nos bares do Quartier Latin, insultava
os companheiros de mesa e os agredia, como fez com Etienne Carjat,
a quem feriu com a ponta metálica de uma bengala. Tomado
de fúria, Carjat, fotógrafo respeitado, autor da célebre
imagem do Rimbaud menino que todos conhecem, destruiu todas as fotos
que fizera dele, com exceção de três que não
tinha consigo.
O auge de tais desregramentos foi sua relação
amorosa com Paul Verlaine, que arrastou para Londres, destruindo-lhe
o casamento. Meses depois, Rimbaud decide romper o relacionamento,
levando Verlaine ao desespero e, finalmente, a tentar matá-lo
com um tiro de revólver. Enquanto o outro é condenado
e preso, Rimbaud termina de escrever, no celeiro da casa de sua
mãe, em Roche, o poema em prosa “Uma estadia no inferno”.
Tem então apenas 19 anos, e abandona a literatura.
Entrega-se, a partir daí, a sucessivas
viagens a pé por vários países europeus, chegando
a inscrever-se como voluntário no exército colonial
holandês, do qual deserta três meses depois. Em 1875,
no último encontro com Verlaine, em Stuttgart, este, recém-saído
da prisão e convertido ao catolicismo, tenta doutriná-lo.
Rimbaud o surra e o faz voltar para a França. “Minha
vantagem é que eu não tenho coração”,
afirma à época. Essa vida de andarilho aventureiro
culmina com a decisão de transferir-se para a África,
onde se fixa definitivamente em 1880. Nunca mais voltará
à Europa, a não ser para morrer, onze anos depois,
de um tumor no joelho direito.
A impressão que se tem, lendo estas cartas,
é que, assim que desembarca em Aden, Rimbaud se torna outra
pessoa. Na famosa “carta do vidente”, ele havia escrito
que “eu é um outro”. Pode-se então dizer
que esse “eu”, que não era ele, deu lugar a um
outro, que era? Ou seria mais correto afirmar que o Rimbaud adolescente,
que se inventara nas noitadas de Paris e nos poemas geniais, tomou
de fato horror à poesia e ao desregramento para, na África
tórrida e rude, reinventar-se como um homem comum, preocupado
somente com transações comerciais e viagens de negócios?
Durante todos os anos passados entre Aden e
Harar, jamais alude à sua primeira vida e, quando alguém
o indaga sobre isso, responde que preferia “não remexer
naquele lixo”. Negocia com ouro, café, peles de animais,
mete-se no tráfico de armas, compra uma escrava e vive com
ela em concubinato, e depois com outra mulher, também negra.
Não se sabe de nenhum escândalo, de nenhum relacionamento
homossexual durante seu longo exílio africano. Todos os que
o conheceram ali falam dele como de um homem reservado e triste,
que às vezes fazia rir com suas tiradas sarcásticas,
mas um negociante ativo e responsável.
Só não perdeu o hábito
de andar quilômetros a pé, então à frente
das caravanas de camelos, causa, talvez, das varizes que lhe surgiram
na perna e o obrigaram a ir se tratar na França. Numa padiola,
fez a mais terrível de suas viagens até chegar ao
porto onde embarcou para Marselha. Amputaram-lhe a perna. Esquálido,
temendo morrer, chora abraçado à irmã, que
tenta confortá-lo. “Eu vou para o fundo da terra e
tu continuarás andando ao sol”, responde ele. Morreu
em 10 de novembro de 1891.
Aqui estão as cartas de Rimbaud, traduzidas,
comentadas e anotadas por Ivo Barroso, publicadas pela primeira
vez no Brasil numa edição integral. Lê-las é
como acompanhar a trajetória do poeta, de sua infância
à agonia.
Fecho o livro, arrasado. E me vem à memória
o trecho de um poema seu: “mas as aranhas do cercado/ comem
apenas violetas”.
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