AS UVAS DA RAIVA
Sergio Bermudes é desses amigos, felizmente raros, cuja amizade nos endivida irremediavelmente. Ele já era credor de um saldo quase ruinoso nessa contabilidade afetiva, acumulado em anos de pronto-socorro forense, almoços, jantares e telefonemas que viraram cursos urgentes de direito, português, literatura, história do Brasil, cozinha capixaba e/ou qualquer matéria capaz de reprovar jornalista no vestibular diário do ofício, quando topou sem pensar duas vezes um convite para escrever no site no., revista eletrônica que estava para nascer na internet.
Na ocasião, só fez uma exigência. Queria escrever de graça. Ou seja, continuar amador. Assim, tendo acertado as condições do contrato com lábia de advogado, passou imediatamente a trabalhar com profissionalismo exemplar. Dali para frente, mandou-nos textos impecáveis, que chegavam à redação prontos para publicar e dispensavam revisão. Vinham invariavelmente na hora certa e no tamanho certo, sem um adjetivo a mais ou uma vírgula a menos. Pontuais mas surpreendentes, cada um falava de uma coisa diferente, duas segundas-feiras por mês. Durante dois anos, sua regularidade atravessou incólume todas as turbulências de uma agenda carregada, disputando espaço com a série inumerável de viagens pelo Brasil, voos internacionais, causas complicadas, expedientes intermináveis, dias santos e feriados – enfim, toda aquela rotina que transformou seu escritório de advocacia numa das bancas mais animadas do país, como sabe todo bacharel e candidato a jornalista furão no Rio de Janeiro.
Assunto é o que nunca faltou a Sergio Bermudes. Falando, ele é há muito tempo um mestre da boa conversa. Sabe tudo o que vai acontecer e jamais se esquece do que aconteceu. Mas foi escrevendo que, pela primeira vez, passou a mostrar regularmente nas próprias crônicas a mistura de humor, memória, faro jornalístico e curiosidade implacável que estava habituado a usar em reportagens alheias. E o resultado é que sua carreira de amador durou pouco. Ele é um cronista que veio pra ficar.
MARCOS SÁ CORRÊA
Nota à primeira edição (2002)
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As uvas da raiva, de Sergio Bermudes – grande advogado e notável jurista – é obra que revela não apenas um cronista senhor de seu ofício, com senso de realidade, humor e concisão, mas também a competência do escritor em um gênero que, ao contrário do que alguns sustentam, não é menor: quando o escritor domina superiormente a linguagem, sua mestria fará a grandeza de um gênero.
O autor, na linhagem de Rubem Braga (nascidos ambos em Cachoeiro de Itapemirim) – e a quem, in memoriam, dedica o volume –, escolhe para seu livro um título próximo ao do romance As vinhas da ira, de John Steinbeck, obra-prima da ficção do século XX. Na crônica que nomeia este volume, Sergio Bermudes considera boa uma tradução que não deixe vestígio da língua de origem. Quando refere que a substituição de As vinhas da ira por As uvas da raiva retiraria a força do original, pratica um ato de autoironia e humildade, comparando depreciativamente sua sugestão com o efetivo nome, entre nós, do romance norte-americano.
Bermudes desfia seu novelo de crônicas como se fossem cachos de pródiga parreira, ora visitando o passado, ora captando, no presente, traços ou flagrantes do mundo, em que se misturam o amor à música, um pedido de professora, o namoro na calçada. Às vezes, conjuga magicamente a timidez congênita à praticada gramática, o afeto aos livros. Evoca o rádio, os estagiários de seu escritório, num caleidoscópio de situações que, no fundo, apontam para a transitoriedade da vida, para “a grande dor das cousas que passaram”, como escreveu Camões.
O volume inclui alguns contos, harmonicamente situados entre as crônicas, dentre eles o primoroso “O quinto hóspede”, com seu lacônico e pungente desfecho. O autor também se debruça, com sabedoria, sobre Charles Chaplin, desgostoso de nele descobrir o homem sob o personagem Carlitos. Fala de Anchieta e do papa João Paulo II. Ostenta o gosto dos apólogos e das fábulas, onde entram o cotidiano de forno e fogão, as águas do carnaval (as águas rolam!), as guerras, o vizinho em lágrimas, um avião imenso, o caixão e a sogra, os maus conselhos, a missa em latim – todas essas crônicas com o toque certeiro da imaginação temperada por uma sensibilidade lírica.
O cronista emprega com exatidão as palavras, na busca não de uma verdade pública, mas de sua verdade íntima, ainda que incidindo em coisas mínimas. Recordo-me de uma frase de Stendhal: “As menores coisas bastam, porque tudo é signo em amor”. O escritor Sergio Bermudes merece ser incluído entre os grandes criadores da crônica brasileira.
CARLOS NEJAR |