ANÔNIMA INTIMIDADE, OU UM OUTRO EM
NÓS
Gaudêncio Torquato
Aqui não é apenas o nobre vice-presidente
deste país, Michel Temer, embora trabalhe noutra república,
a do poema. Não é somente um dos mais insignes juristas,
acostumado ao trato com as leis, mas um jurisconsulto do verso,
arquitetando metáforas, hipérboles, oximoros, símbolos,
que no “teclado branco” da luz se combinam. E é
o verso que inventa o poeta.
Não é o político que administra
a memória, é uma sensibilidade que ilumina a inteligência
“no reino das palavras”, o plural singular de um “Outro”
– o “Outro” que o argentino universal Jorge Luis
Borges insistia em transfigurar. E se confunde com a apresentação
desta Anônima Intimidade como obra de ficção,
sendo qualquer semelhança com o autor e terceiros apenas
mera coincidência. Ou, talvez, coincidência de um sonho
noutro. E, se buscarmos a origem, será também sonho.
Michel Temer não quer somente a Anônima
Intimidade; quer ter a certeza de ocultar, discretamente, o
autobiográfico no obscuro vulto coletivo. É verdade
que essa matéria combustível de amor não se
regula pelo Parlamento. O poeta cria seu próprio rosto, mas
qual o rosto da infância no humanista senão o ser maduro
restaurando o menino?
Esse é um mundo que desampara, cansado
de si e das coisas; quando o autor percebe o repetir do riso, o
trancar da solidão, verifica o quanto é possível
fazer poesia alegremente, lembrando Montaigne na afirmação
de que “tudo deve ser realizado com alegria”. E sublinha:
“O mundo não era eu, / Eu não era o mundo. /
Dois estranhos / Contra a minha vontade, /Convivendo.//”
A estranheza do que é anônimo e
do que é mais íntimo permeia o texto, onde o tempo
consome as relações ou tenta desequilibrá-las.
Com a humildade severa do que é capaz de ir contemplando
erros e enganos, assumindo o caminhar da vida sem disfarces:
“Quando parei para
pensar,
Todos os pensamentos
Já haviam acontecido”.
Mas é imperioso o transitório,
imperioso “o acumular de séculos de dor”, o flagrar
do momento que vem e o que se distancia. Com a difícil incomunicabilidade
– “Não tenho mais a quem falar./Será que
você me ouviria?//” – ele escreve escondendo o
sofrimento, com o arrependimento de haver nascido, que foi o de
Jó, reproduzido por Luís Vaz de Camões em célebre
soneto que começa assim: “O dia em que eu nasci morra
e pereça”.
Sentindo-se “culpado por todos” e
“corpo solto. Desligado”, concilia-se com a unidade,
a completude. Como observou o padre Antônio Vieira antes de
Fernando Pessoa: “Cada um sente como entende”, por entender
sentindo. E desabafa:
“Chorei uma única
lágrima.
Depois, não chorei nunca mais.”
O constante questionamento é a estação
de força desta Anônima Intimidade. Num mover-se
para dentro e fora do ser que, ao abraçar o humano e a beleza,
alcança o silencioso mistério que só a palavra
preserva: o de estar com todos.
Rio de Janeiro, Urca, “Morada do Vento”,
2 de Setembro de 2012.
Carlos Nejar
Da Academia Brasileira de Letras
e da Academia Brasileira de Filosofia
Três palavrinhas sobre esta obra
Autenticidade. Há uma profusão
de pensamentos que têm valor para aqueles que os pensam, como
lembra Schopenhauer, mas apenas alguns possuem força para
conquistar o interesse do leitor depois de escritos. São
os mais verdadeiros, extraídos de percepções
sobre pessoas, atos e coisas, e ganham vida pela forma como são
apresentados. Seu valor reside essencialmente no estilo, que retrata
a alma do escritor.
Concisão. Eis outra alavanca da expressão,
que consiste em separar o necessário do supérfluo,
iluminando a composição com luzes, matizes e sombras
precisas, de forma a garantir a beleza de sua harmonia. Difícil
é a arte de dizer apenas o que é digno de ser dito.
Sentimentos. O autor, nesse compartimento, revela
as teias que o envolvem. Reminiscências, sonhos, o tiquetaque
do relógio, a aspirina, o cigarro no canto da boca, uma letra
do alfabeto, o terno riscado, um adeus na carta, a saudade dos doces
lábios de Iracema, o dançarino de tango, temores e
angústias – eis uma pitada da matéria-prima
com que se construiu a majestosa catedral, onde o leitor encontrará,
justapostas, belas figuras de linguagem que enlevam nossa alma.
Tal é a moldura que cerca os poemas de
Anônima Intimidade. Tive o privilégio de conhecer
a obra quando ainda era um conjunto de rabiscos em guardanapos de
avião. Michel, receoso de mostrá-los, pouco a pouco
foi se acostumando à ideia de torná-los públicos.
Autêntica, concisa, plena de agudas percepções,
essa harmônica coletânea conduz o leitor a uma viagem
profunda ao seu interior.
|