À PROCURA DE UM CÂNONE
Lélia Coelho Frota
Neste livro poliédrico, mas com o nexo
de uma contínua visão ordenadora, Luiz Paulo Horta
sai à procura de um cânone que reaproxime ciência
e espiritualidade, de uma ética em uma sociedade crescentemente
dominada pela tecnologia, com o consequente descompasso da relação
harmônica entre o homem e o cosmo.
A linguagem clara do autor, arquidoutor em comunicação,
absorve com naturalidade a sua erudição nos campos
da filosofia, da música, da literatura, da política,
da história do nosso país. Partindo da premissa de
que “a razão não precisa viver em crise com
a espiritualidade, ou com a sabedoria”, tema central da notável
conferência que proferiu, em 2006, na Academia Brasileira
de Letras, Luiz Paulo Horta entretece de reflexões e referências
concretas a sua visão sobre a hybris – palavra dos
gregos antigos para definir o orgulho, a falta de limite –
que terminou por transformar a Terra em um planeta doente.
O choque entre Oriente e Ocidente é outra
constante das crônicas deste livro, escrito por um homem de
fé que deseja religar os laços entre os domínios
da sacralidade, quer provenham da Bíblia, do Tao de Lao-Tsé,
do tibetano Milarepa ou das teogonias dos povos tribais. É
por uma abertura verdadeiramente ecumênica que esse católico,
considerado até um “vaticanólogo” pela
nossa imprensa, se deixa tocar pela espiritualidade profunda de
outros caminhos que buscam o Deus Criador, a compaixão, o
amor ao mundo dado.
Algumas vezes, Luiz Paulo Horta nos faz pensar
em Montaigne – católico “fideísta”
que rejeitou aceitar um Deus baseado unicamente na razão
humana. Um Montaigne da linhagem de São Paulo, Santo Agostinho
e Guilherme de Ockam. Um Montaigne que repeliu a queima de supostas
bruxas em fogueiras, que se declarou contra as guerras, que avaliou
com seriedade os valores culturais dos índios que as naus
francesas traziam das Américas.
O autor está à procura de um cânone.
Na música ocidental, esse cânone é Bach. Mas
também de um cânone ético, que ele vai buscar
na vida de brasileiros como Joaquim Nabuco, Sobral Pinto, Alceu
Amoroso Lima, Luis Camillo, Gustavo Corção. Mas não
se pense que Luiz Paulo se furta ao som e à fúria
da atual política, aqui e alhures: “Quando bem feita”,
diz ele, “também é um exercício de medida”.
A ascensão de Lula e seu governo, comentários sobre
presidentes que o antecederam, de Juscelino a Jânio, Collor
e Fernando Henrique, políticas financeiras, a armadilha das
“teologias” eleitorais no Brasil, Bush e sua ligação
com o fundamentalismo cristão nos E.U.A., estão entre
os temas que aborda.
Era de se esperar que Luiz Paulo nos reservasse,
neste livro, um território voltado para uma das grandes vertentes
do seu estar no mundo: vamos encontrá-lo em “Gente
da música”. Compositores e intérpretes são
ouvidos e apresentados por um scholar com alma de artista: quem
sabia que o Schiavo de Carlos Gomes podia sustentar o confronto
com várias óperas de Verdi? Ou que, se Machado de
Assis tocasse piano, tocaria como a pianista austríaca Ingrid
Haebler? É inevitável voltar ao alicerce da música:
Bach. “Ao lado da energia que transparece na Tocata e Fuga
em ré menor”, produz-se “uma impressão
de serenidade cósmica. Goethe comentou: como se a harmonia
original estivesse conversando com ela mesma”.
A palavra escrita ganha realce entre os epílogos
do livro, com O senhor dos anéis, do católico
Tolkien, pela qualidade do texto “que fala de coisas importantes,
numa linguagem quase solene como a dos velhos mitos”. O anel
Um, fonte de poder e de destruição para os que se
rendem a ele. Um símbolo de sempre. Mas, para Luiz Paulo
Horta, a trilogia do anel, “talvez o maior acontecimento literário
do finado século XX”, perde para o que continua a ser
o livro-texto da nossa civilização: a Bíblia,
de que ele em breve nos dará um volume comentado, fruto dos
longos anos de encontros e leituras que realizou com grupos na sua
casa e na PUC do Rio de Janeiro.
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