UMA TRILHA CLARA
Não poderia haver momento mais oportuno para o lançamento deste 10 Mandamentos: do país que somos para o Brasil que queremos, de Luiz Felipe d’Ávila. É justamente quando as maiorias vagam na planície das esperanças que cumpre subir a montanha em busca de princípios.
Dando um salto na tradição, lembremo-nos de São Paulo, o mais profundo dos apóstolos porque, não tendo conhecido Cristo pessoalmente, soube interpretá-lo com o entendimento. E foi o santo quem formulou uma questão essencial para o nosso tempo: se a flauta e a cítara não tiverem sons distintos, se o sonido for incerto, como é que as pessoas se preparam para a batalha? Por isso, diz, também as palavras hão de ser inteligíveis. E raramente se produziu, como hoje em dia, tanto alarido para tão pouco significado.
Um dos principais méritos do livro de d’Ávila é, justamente, afirmar a diferença entre o som da flauta e o som da cítara; é distinguir as tradições que nos esmagam e nos condenam ao atraso daquelas que, desde sempre, carregavam virtudes grávidas de futuro.
A “Teoria das Elites” (ou “teorias”) tem uma pequena tradição no Brasil. Quando se revela, mais se dedica aos aspectos viciosos de nossa formação, tomada como mera deformação, do que às suas eventuais e particulares virtudes. É nessa trilha que se formaram alguns clássicos da nossa literatura sociológica, como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro.
E não vai aqui, muito ao contrário, uma tentativa de desmerecer obras e autores. São essenciais ao entendimento do que somos. Mas uma coisa é certa: nesses dois grandes escritos, não se encontram as nesgas de salvação que estão em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Conforta saber que somos feitos de dores e delícias, de luzes e de sombras, de vícios e de virtudes.
O autor divide o seu trabalho em três partes. A primeira, sob a rubrica “O Atoleiro do Presente”, traz seis pequenos ensaios que fazem o diagnóstico de nossa vasta melancolia. Merece destaque “A Elite e a Lei de Gerson”, em que se faz uma das melhores sínteses que já li sobre os donos do poder de hoje: “Deve-se creditar grande parte da crise política e institucional do Brasil ao comportamento irresponsável da sua elite. Ela deseja apenas desfrutar dos privilégios da civilização, mas não quer participar da árdua tarefa de conduzir o país, de governar o Estado, de se engajar no mundo para defender os valores e as instituições que sustentam a civilização”.
Irreparável. Pergunte-se o leitor e responda mentalmente, em silêncio compungido: onde estão os nossos liberais? É chegada a hora de subir a montanha em busca das leis que possam assegurar o progresso e a nossa liberdade.
É o que faz d’Ávila na terceira parte do livro, quando elabora um decálogo — que merece ser gravado na pedra — para que o país saia, então, do atoleiro.
São, há de perceber o leitor, valores do chamado “estado liberal”, que, para mim, não existe sem que a ele se acrescentem dois outros valores: “democrático” e “de direito”.
A segunda parte — “As Narrativas do Passado” — é especialmente encantadora porque o autor põe para dialogar visões contrastantes sobre o Brasil, com leitura e observações muito agudas sobre Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, por exemplo. E – ora vejam! – dá especial relevo às similaridades de pensamento entre um franco reacionário, como Oliveira Vianna e um comunista, como Caio Prado Júnior. O que une os dois? O desprezo à democracia liberal, que consideram decadente.
Nossas esperanças, neste 2017, estão na planície. Direita e esquerda se encontram nas ruas, mais ou menos estreitadas num abraço insano, vocalizando convicções que traduzem um ódio nada discreto aos valores do Estado liberal. Hora de se distinguirem cítara e flauta.
Leia estes 10 Mandamentos... Como na música de Caetano Veloso, d’Ávila vê “uma trilha clara para o meu Brasil/ apesar da dor”.
REINALDO AZEVEDO |