FAZER HISTÓRIA E ESCREVÊ-LA
Eurípedes Alcântara
As
memórias de diplomatas raramente descrevem com isenção
e justiça as posições antagônicas dos
colegas de carreira. Os autores costumam se engrandecer pela exaltação
de suas próprias visões privilegiadas dos acontecimentos
em contraste com as avaliações desastradas e propostas
equivocadas de seus rivais. Não é o caso de George
Kennan, se não o mais hábil diplomata americano do
século passado, sem dúvida o mais influente, e por
mais tempo, nas questões-chave das relações
entre os Estados Unidos e a União Soviética, em que
se instalou inúmeras vezes como algodão entre cristais,
distanciando os dedos dos líderes de ambos os lados dos botões
de disparo de seus arsenais nucleares. Em suas Memórias,
em dois volumes, publicadas no Brasil pela TOPBOOKS, Kennan revela
sua estatura de gigante não pelo menosprezo das teses concorrentes
e de seus autores, mas pelo generoso e correto reconhecimento de
seus méritos.
A tese de Kennan foi a vencedora em Washington
sobre como os Estados Unidos deveriam se comportar na Guerra Fria,
aquele tempo quente em que os mundos capitalista e comunista viviam
montados e m bombas atômicas capazes de destruir o planeta
diversas vezes. Ele foi o fundador de uma geração
de formuladores da política externa americana batizados de
“pombas”, em oposição aos “falcões”.
Os primeiros, mais cerebrais, adeptos ao diálogo, reflexivos
e sensatos. Os segundos, guerreiros convencionais prontos a destruir
o mundo para salvá-lo do comunismo soviético.
Kennan ganhou notoriedade em 1947, quando servia
na embaixada americana em Moscou e fez publicar anonimamente na
revista Foreign Affairs o que ficaria conhecido como o Artigo-X.
Sem nenhum valor como documento oficial do governo, o Artigo-X foi
mais influente do que todos aqueles cheios de carimbos, protegidos
por lacres e destinados apenas aos olhos do ocupante do Salão
Oval da Casa Branca. O Artigo-X defendia com brilhantismo a tese
de que os Estados Unidos deveriam evitar a todo custo o confronto
direto com a União Soviética, limitando-se a conter
seus avanços em regiões remotas sem interesse estratégico
óbvio para Moscou, deixando o tempo passar até a inevitável
implosão do sistema comunista sob o peso de suas próprias
falhas morais e ineficiência. Escreveu Kennan: “A força
do Kremlin repousa grandemente no fato de que seus líderes
sabem esperar. Mas a força do povo russo está justamente
no fato de que ele sabe como esperar ainda por mais tempo”.
Pombas e falcões de revezaram no poder
em Washington nos pouco mais de quarenta anos que se passaram desde
a previsão de Kennan e o efetivo desmoronamento da União
Soviética, em dezembro de 1991. Mas nessas quatro décadas
nenhuma pessoa exerceu mais influência na política
externa dos Estados Unidos do que George Kennan. A despeito de ser
um dínamo intelectual e um acadêmico de recursos, suas
memórias são escritas em um estilo comoventemente
simples em uma linguagem que rivaliza com os grandes prosadores
do idioma inglês. A tradução para o português
preserva as qualidades do original.
O primeiro volume (1925-1950) narra as aventuras
de um jovem adulto, vigoroso e atento, que teve a rara sorte de
estar nos lugares certos nos tempos históricos mais interessantes.
Kennan estava em Moscou em 1935 quando Stalin começou os
expurgos com fuzilamentos e o encarceramento de milhares de adversários
reais e imaginários. Estava em Praga em 1938 quando as tropas
nazistas invadiram os sudetos. Estava em Berlim quando Hitler declarou
guerra aos Estados Unidos. Foi um dos arquitetos do Plano Marshall
que reergueram a Europa Ocidental depois da II Guerra Mundial. De
tudo participou com inflexível noção do dever
de um servidor de sue governo no exterior. Tudo anotou e descreveu
mais tarde sem adornos retóricos e sem disfarçar as
fraquezas e as vacilações da condição
humana. As recordações da entrega da Polônia
pelos americanos ao então aliado Stalin na repartição
territorial depois da derrota de Hitler dão a exata medida
do valor de Kennan: “Tive pena de mim mesmo naquele momento.
E desejei que ao invés de murmurarmos algumas palavras de
otimismo oficial nós tivéssemos o discernimento e
o bom gosto de simplesmente abaixarmos nossas cabeças em
um gesto silencioso diante da tragédia de um povo que nós
ajudamos a salvar de nossos inimigos e a quem não podemos
salvar de nossos amigos”. O segundo livro (1950-1963) começa
com Kennan, derrotado pelos falcões sobre a Guerra da Coreia,
chegando com a família ao Instituto de Altos Estudos de Princeton
para o que se acreditava ser sua aposentadoria. Dois anos depois,
lá estava ele na linha de frente novamente, designado embaixador
dos EUA em Moscou. Um grande homem. Um grande livro.
Revista VEJA
09/08/2014
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