VOCAÇÃO:
EDITOR
O cearense Zé Mário, em 13 anos,
fez da Topbooks uma das maiores editoras brasileiras
Ipojuca Pontes
José Mario Pereira. Ou simplesmente
Zé Mário. É um nome que se impõe na vida editorial brasileira
desde a publicação do livro de memórias de Roberto Campos,
"A Lanterna na Popa", em 1994, um desafio capaz de dobrar
qualquer peso pesado do ramo. A partir de então a Topbooks,
sua editora, ao cabo de 13 anos de existência pode (e
deve) ser considerada, hoje, como uma das mais importantes
do país - importância consolidada a partir de reedições
centenárias de livros como "Um Estadista do Império",
de Joaquim Nabuco, até o recente lançamento dos Clássicos
da Liberdade, do Liberty Fund, conjunto de obras tidas
como insubstituíveis e funda-mentais para a formação
do pensamento ocidental moderno - uma autêntica universidade
portátil em forma de coleção, que reúne escritores do
porte de David Hume, Irving Babbitt, Bernard Mandeville,
Michael Polanyi, Johannes Althusius e Wilhelm von Humboldt,
respectivamente autores dos célebres "Ensaios", "Democracia
e Liderança", "A Fábula das Abelhas", "A Lógica da Liberdade",
"Política" e o atualíssimo (especialmente no Brasil)
"Os Limites da Ação do Estado". São, sem sombra de dúvida,
os "livros do ano".
Qual o segredo do editor Zé Mario?
Por que em tão pouco espaço de tempo ele atingiu dimensão
insuspeita numa atividade tão competitiva quanto desgastante?
A simples menção do "amor pelo trabalho" - mesmo levando
em conta sua energia pa-ra cumprir tarefa em tudo similar
ao do remador de galeras dos filmes históricos de Cecil
B. DeMille - não explica o enigma. Nem as freqüentes
"visitas da inspiração" que o acodem são suficientes
para dar resposta ao mistério. Talvez tudo se explique
pela simples vocação: Zé Mario seria um caso raro de
talento certo na atividade certa.
Como já foi tantas vezes dito, o
cérebro da Topbooks não é apenas um editor, isto é,
um sujeito que edita ou organiza a publicação de livro.
Ele é um especialista que conhece e estima os livros
que entrega ao público, cuidando de cada título com
o carinho de um pai zeloso, preocupando-se com igual
empenho das imprescindíveis anotações, adequação tipográfica,
revisão, projeto gráfico, estímulo ao autor, atento
com a escolha justa do prefaciador da obra ou, quando
não, ele próprio empenhado no ato de apresentar o texto
escolhido. Pessoalmente, conheci muita gente de êxito
no ofício, alguns na intimidade: José Olympio, Ênio
Silveira, Alfredo Machado, Paulo Rocco e Alfred Knopf,
o impressionante publisher americano, editor de "Casa-Grande
& Senzala" para a língua inglesa. Zé Mario reúne as
qualidades de instinto e perspicácia próprias a cada
um deles, com um "porém" adicional: é incansável e,
mesmo no lazer, só cuida de livros. É comum vê-lo, após
longo dia de trabalho, que começa invariavelmente pela
madrugada, percorrer com ávida paciência os mais variados
sebos e livrarias, esteja no Rio, São Paulo, Nova York,
Amsterdã ou Paris, sempre na procura da edição rara
ou da novidade literária. Pelo que sei, apropriou-se
existencialmente da máxima de Plínio, o Velho: "Nenhum
livro é tão ruim que, sob algum aspecto, não tenha sua
utilidade".
Pode-se dizer, como proclamam alguns,
que Zé Mario "deu sorte". Ainda ado-lescente, chegando
ao Rio vindo do Ceará, fez-se amigo e colaborador de
gente impor-tante na atividade literária, entre eles
Aurélio Buarque de Holanda, Paulo Rónai, Pedro Nava,
Alceu Amoroso Lima e Gilberto Freyre, com os quais assimilou,
convivendo na intimidade, métodos & gosto pelo conhecimento.
Mas a sorte não explica tudo. Ele é portador de qualidades
congênitas. Seu caráter íntegro, por exemplo, transmite
a sensação de que estamos convivendo com uma virtude
humana difícil de encontrar em qualquer parte do mundo:
a confiabilidade. Seguramente por isso, fez-se amigo
de personalidades tão distintas quanto Darcy Ribeiro
e José Guilherme Merquior, ou Paulinho da Viola e Jorge
Serpa. De fato, no plano das relações que primam pela
decência o editor da Topbooks é imbatível. O contista
João Antônio, impressionado com a sua capacidade política
de conviver com os contrários, tomou da caneta e escreveu
texto lapidar: "José Mario Pereira, vindo do Nordeste,
sem padrinhos, consegue hoje trafegar com desenvoltura
em mundos diversos. É um articulador nato, de versatilidade
social capaz de reunir num mesmo acontecimento figuras
tão dispares quanto Roberto Marinho e Luís Carlos Prestes,
e continuar querido pelos dois". E arrematou, antes
de assinar: "Por via das dúvidas, é melhor ser seu amigo!".
Vê-lo trabalhar, no originalíssimo
cenário da Topbooks, no coração do Rio de Janeiro (no
quarteirão da Inhaúma com a Rio Branco), cercado por
livros, quadros, fotografias (uma delas de Raymond Aron,
o historiador de idéias que conheceu pessoalmente) e
apenas três assessores, tem um tanto de espetáculo.
Enquanto revisa textos complicadíssimos que exigem grande
acuidade, orienta os funcionários, acerta detalhes da
produção com a editora-assistente Christine Ajuz, sua
mulher há 20 anos, recebe visitas e transmite (pelo
telefone) as informações mais surpreendentes.
Mestre na arte da convivência, tornou-se,
há anos, íntimo da quase totalidade dos membros da Academia
Brasileira de Letras, especialmente dos cardeais desse
Butantã de manhas e vaidades. Nas eleições da ABL, candidatos,
jornalistas e curiosos o cercam em busca de conselhos
e informações precisas. Mas o editor Zé Mario é, ao
mesmo tempo, um lutador duro e versátil, sobretudo quando
enfrenta adversários que julga desleais. Nessas ocasiões,
bem entendido, embora peso leve, na linha de um Acelino
de Freitas, o "Popó", assimila golpes pesados, que levariam
à lona gigantes do ringue, ao tempo em que desfecha
jabs sucessivos, mas potentes, que levam o oponente
à exaustão e ao desespero.
Para além da confiabilidade, sua
principal qualidade (ia escrevendo "arma") é a rigorosa
disciplina intelectual. Trafegando num meio onde o livro
virou uma banalidade, Zé Mario procura, investiga, confronta,
amealha. E, para isso, faz uso sistemático da especialíssima
teoria do conhecimento (epistemologia), que permite
ao ser racional aproximar-se do como e do que podemos
- se podemos - conhecer, ramo dominante e complexo da
filosofia. Esse "cearense tão lúcido" (a expressão é
de Gilberto Freyre), dono de uma memória poderosa, lê
e anota tudo (com método, engenho & arte), especialmente
os livros fundamentais e clássicos para o adestramento
da reflexão e do saber. Que eu saiba, poucos, no seu
ofício, se atrevem a tanto.
A Topbooks já publicou cerca de 300
títulos, todos, basta ver o catálogo, de qualidade.
Mas, como editor, Zé Mário vive sempre sonhando alto;
por exemplo, quer publicar a biografia do Dr. Samuel
Johnson, o lexicógrafo inglês, escrita pelo confidente
James Boswell, um clássico no gênero. Ou ainda a edição
crítica - tarefa que incrivelmente nunca foi levada
adiante - das obras completas de Machado do Assis, o
monumento da literatura nacional. E, havendo margem,
lançar os quatro volumes que compõem "Order and History",
a obra-prima de Eric Voegelin, sem a qual fica difícil
entender a humanidade pós-Marx.
Entre os muitos livros que
planeja para 2004, Zé Mario está confiante na edição
de "O Repórter da História - 60 anos de Tumulto", que
lhe propôs o jornalista Hélio Fernandes, um testemunho
fundamental (com certeza polêmico) e mais do que necessário
escrito por quem de fato participou de tudo - ou quase
tudo - do que ocorreu na vida nacional a partir da segunda
guerra mundial. É só esperar. |