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PELA EDITORA
Felipe Fortuna
Uma caricatura de José Olympio
(1902-1990), feita por Alvarus e até então
inédita, torna-se o maior emblema de todas as
novidades que ainda serão encontradas em José
Olympio – o editor e sua Casa (Sextante,
421 p., R$150). Agora estampada na lombada e na folha
de rosto, a caricatura anuncia fotos, documentos, dedicatórias,
fac-símiles de cartas e de autógrafos
que, como num encaixe perfeito, evocam uma imagem além
da pessoa: as diversas peças dizem respeito ao
Brasil moderno, a escritores destacados na prosa e na
poesia, no memorialismo e na historiografia, nos estudos
de sociologia e de política. Com forte intuição
e conhecimento profissional, José Mario Pereira
organizou não exatamente uma biografia, mas o
registro tão vasto quanto possível da
atividade editorial de José Olympio, a partir
dos anos 30. A Casa abrigou e impôs ao gosto o
modernismo, a poesia de Carlos Drummond de Andrade,
a ficção de Graciliano Ramos e João
Guimarães Rosa, a criativa sociologia de Gilberto
Freyre, entre centenas de autores nunca menores em qualidade
e em quantidade de livros.
Para enfrentar a tarefa de expor
uma produção marcada por extensíssimo
espectro ideológico, surgiram pelos menos quatro
livros embutidos na moldura geral. O primeiro livro
se forma a partir das fotos que recuperam gerações
de escritores e suas relações com o poder:
vê-se Cassiano Ricardo, intelectual a serviço
do Estado Novo, apresentar o poeta Lêdo Ivo a
Getúlio Vargas; vêem-se os registros de
jantares e de recepções e encontros de
trabalho que reuniram personalidades de orientação
político-partidária divergente em momentâneo
ecumenismo; vê-se, por fim, José Olympio
num expressivo abraço em Delfim Netto, quando
a editora passava por grave crise financeira. Os segundo
livro surge, em tinta preta, com os capítulos
que resumem os diversos gêneros, as coleções
e as traduções de 4,850 edições
e a publicação de 1,743 autores brasileiros.
Não é possível
perder de vista o consórcio bem-sucedido do empresário
José Olympio com os Governos do dia, bem como
as indicações políticas que tiveram
sobre o editor a força de um fatalismo: o livro
reproduz o excepcional documento de 1918 no qual um
padrinho do rapaz comunica a seu pai haver conseguido
emprego para o afilhado na Livraria Garraux. A realidade
parecia uma metáfora: o rapaz também obteve
um quarto nos subterrâneos do Palácio dos
Campos Elísios! Outros documentos exibem a mesma
trama: ali está, por exemplo, a reprodução
da nota fiscal referente à venda de cinco mil
coleções dos cinco primeiros volumes de
A Nova Política do Brasil, de Getúlio
Vargas, ao Governo de São Paulo. O organizador
confirma, assim, que a maior parte dos livros do ditador
“escoava pelos canais oficiais, desembocando em
bibliotecas e instituições de ensino Brasil
afora”. Ao longo de 30 anos, José Olympio
editaria 18 livros de Getúlio Vargas, além
de estudos a ele dedicados. Presidentes e outras autoridades
marcaram presença na fundação e
no impressionante ciclo de crescimento da editora; lamentavelmente,
também no final, em 1975, quando o controle acionário
da José Olympio passou para o então Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) –
por ironia, uma das criações getulistas...
É quando surge o terceiro
livro dentro de José Olympio – o editor
e sua Casa, o mais excepcional de todos: aquele
no qual o pesquisador, com tenacidade e em tinta ocre,
descreve as características e as apresentações
de numerosas edições, comenta as capas
de artistas como Santa Rosa e Poty e – sobretudo
– revela muitas dedicatórias. Aqui se encontra
a contribuição mais original sobre o editor,
a exigir leitura atenta: essas anotações
transmitem um conhecimento tão inesperado quanto
pertinente acerca da vida literária brasileira.
No caso de Graciliano Ramos, por exemplo, os achados
são eloqüentes. Transcreve-se a dedicatória
do romancista numa edição de Angústia:
“A José Olympio, o homem que, publicando
este livro em 1936, se arriscou a ir para a colônia
correcional, como o autor.” Ou então, num
exemplar de Insônia: “José
Olympio: três destas histórias foram escritas
na cadeia. Mandar-lhe-ei outras quando para lá
voltar. Abraços.” Também se pode
ver a página do original de O Mundo Coberto
de Penas, do mesmo escritor, afinal publicado como
Vidas Secas (1938) por sugestão de Daniel Pereira,
irmão do editor.
O quarto livro que sobressai do livro
maior ganhou, a propósito, um caderno especial
com “depoimentos, artigos e cartas”. Todo
o material modela uma biografia multifacetada, e dá
testemunho de um editor que – uma raridade –
mereceu crônicas e poemas dos maiores escritores
brasileiros. Em meio a louvações justas,
mas previsíveis, aparecem elogios que parecem
tocados pela ambigüidade, como fez Jorge Amado
nas memórias reunidas em Navegação
de Cabotagem (1992), ao declarar que José
Olympio “tinha a generosidade dos patriarcas”.
O romancista baiano sabe do que está falando:
foi ele mesmo empregado de J.O. e viu a Casa editar
o célebre Capitães de Areia (1937)
e ainda reeditar seus quatro primeiros romances. Resta
esclarecer por que o maior editor brasileiro não
mais publicou, a partir de 1941, o romancista brasileiro
tão popular: persistem rumores de que este se
zangou ao ver o nome de Plínio Salgado preceder
o seu num anúncio das novidades literárias...
“Empresário das
inteligências”, na expressão de Genolino
Amado, “bom tirano”, para Temístocles
Linhares, o editor teve o instinto e a determinação
de montar seu negócio no período inovador
subseqüente à crise financeira de 29 e à
revolução de 30. Valendo-se das forças
conservadoras e progressistas que traziam idéias
e formavam novos leitores (incluindo o público
feminino), José Olympio profissionalizou o escritor
brasileiro, tendo sido o promotor do romance nordestino
e de autores novatos ou desconhecidos. A sua obra é
a divulgação entusiasmada do maior conjunto
de criação literária e de reflexão
sobre o Brasil. A exibição desse acervo
da inteligência nacional está contida,
em diversas formas, em José Olympio –
o editor e sua Casa. E José Mario Pereira,
com seu livro múltiplo, pôde cumprir algo
da previsão de Tristão de Athayde: “quando
se fizer a história secreta do nosso José
Olympio, o que não se sabe excederá em
muito o que já se sabe.”
caderno Idéias & Livros
JORNAL DO BRASIL
13/09/2008
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