EDITORAS
E EDITORES
Wilson Martins
0s grandes editores distinguem-se
das editoras puramente comerciais por exercerem uma
missão civilizadora. Como, em nossos dias, os conglomerados
econômicos gigantes, em busca de diversificação, adquiriram
praticamente todas as editoras tradicionais, na Europa
e nos Estados Unidos (conservando-lhes as denominações
consagradas numa operação dúbia destinada a beneficiarem-se
com o respectivo prestígio, ao mesmo tempo em que ludibriam
deliberadamente o público), tornou-se necessário, e
é o que proponho, introduzir no vocabulário da profissão
uma diferença semântica entre "editor" e "editora",
separando-se e quase opondo, de um lado, o editor propriamente
dito (o que sabe avaliar a qualidade, e não apenas a
vendabilidade do que publica), tradição que se iniciou
na Europa renascentista, e, de outro lado, as empresas
que se dedicam à fabricação de livros. Discriminação
semelhante deve ser feita entre livreiros e vendedores
de livros.
Com a Renascença, assinalei alhures,
a tipografia se transformou simultaneamente em uma tarefa
humanística e em uma tarefa artística, reunindo, dessa
forma, os dois caracteres essenciais do movimento, sendo
não somente o seu incomparável instrumento de divulgação
e de vitória, mas também uma das suas encarnações mais
típicas. Quem dizia "Impressor" no século XVI, escrevia
Paul Dupont, "dizia ao mesmo tempo um homem instruído,
um erudito mesmo, sempre consciencioso e honesto, tendo
apenas uma paixão, a da ciência, um desejo, o de uma
nobre ilustração, um medo, o de se ver ultrapassar em
talentos e glória".
Daí surgiram as grandes dinastias
de tipógrafos e as dinastias dos grandes tipógrafos,
como Aldo Manucio, por exemplo, cuja oficina era, ao
mesmo tempo, uma academia de eruditos que trabalhavam,
se não sob suas ordens, pelo menos sob a sua orientação.
Para dar idéia dos seus escrúpulos, basta lembrar que
na edição de Platão, em 1513, ele afirmava, no prefácio,
estar disposto a pagar um escudo de ouro para cada erro
que nela se encontrasse (v. W. M., "A palavra escrita",
segunda parte, cap. 8: "Os grandes tipógrafos").
Quatro séculos depois, já não há
tipógrafos no mundo da edição e se, nos grandes centros,
os livros saem geralmente sem erros de composição, isso
se deve, antes de mais nada e pelos mesmos motivos,
a razões de ordem econômica, dado o alto custo acarretado
pelas correções em tempo de trabalho. Em nosso caso,
a missão civilizadora foi exercida por editores paradigmátícos,
cada um à sua maneira e no momento em que trabalharam,
podendo?se dizer que estiveram tão integrados em cada
um deles quanto os escritores que publicavam.
É impossível imaginar a edição
brasileira do século XIX omitindo a figura e as atividades
de B. L. Garnier, tão ligado a Machado de Assis quanto
o próprio Machado estava ligado à literatura. Não era
o único, claro está: o "Almanaque Garnier" para 1914
enumerou os autores publicados pela "Casa", como, no
século XX, José Olympio gostava de se referir à sua
própria: Aluísio Azevedo, Alberto de Oliveira, Mello
Morais Filho, Joaquim Nabuco, José Veríssimo, Lúcio
de Mendonça, Artur Azevedo, Alfredo Varela, Nestor Vítor,
Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac, Afonso Celso, Visconde
de Taunay, Sílvio Romero para referir os mais notáveis.
Entre Garnier e José Olympio, o lugar
de honra foi ocupado por Monteiro Lobato, sobre quem
é desnecessário insistir e que se qualíficava a si mesmo
como "um editor revolucionário", cujo destino tragicamente
irônico foi malograr quando montou uma oficina para
tornar?se fabricante de livros. Do que, aliás, muito
se orgulhava. A crítica tendenciosa dos modernistas,
à beira da má?fé pura e simples, configurou?o como "inimigo"
da nova literatura, embora lhe devesse a publicação
de numerosos dos jovens turcos.
Se Lobato foi o editor dos anos 20
e José Olympio o dos anos 30 (cuja "Casa" sobreviveu
ao seu momento de glória), os anos 60 seriam de Ênio
Silveira e seu irreprimível tropismo político, além,
bem entendido, da tradução do "Ulysses", mera curiosidade
bibliográfica, mas, de qualquer maneira, uma data histórica.
Entrávamos, entretanto, no período das traduções comerciais,
boas e más, tanto nelas mesmas quanto nos autores traduzidos,
período em que as "editoras" predominaram sobre os "editores".
Nos anos 90, José Mário Pereira
restabeleceu a tradição editorial no sentido nobre da
palavra. Não veio para suceder aos nomes do passado,
mas para substituí-los. Além das edições originais,
suas reedições restituíram clássicos desaparecidos,
como Oliveira Lima e Joaquim Nabuco, pelo exemplo das
recuperações eruditas e escrupulosas. Com isso, a editora
Topbooks propõe uma lição de dignidade profissional,
mais uma vez confirmada nos "Panfletos satíricos", de
Jonathan Swift (tradução de Leonardo Fróes) e na famosa
"Areopagítica", de John Milton, traduzida por Raul de
Sá Barbosa.
É uma "defesa total" da liberdade
de imprensa, como ele mesmo a qualificava. Total? Felipe
Fortuna escreve no excelente prefácio que ele "se opunha
à censura prévia. Mas nada tinha contra a censura posterior
de qualquer publicação", o que é ainda pior: no primeiro
caso, impede-se o aparecimento do texto; no segundo,
pune-se o autor com a maior severidade. Como todo mundo,
John Milton era contra a censura que o censurasse, mas
a favor da que censurasse os seus adversários ideológicos.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
26/06/1999 |