O MUNDO À SOLTA
Silviano Santiago
Entregue à própria
sorte. O mundo gira. Entregue ao acaso dos ventos ideológicos,
das explosões fratricidas e das misérias locais. O
mundo está à solta. Não como balão ou
papagaio, cabelo feminino ou pássaro de canto alvissareiro.
“O planeta tem raiva”. Está à solta
como cavalo liberto das rédeas ou goela de cão hidrófobo
ou drone em missão de rapina. “Não há
mais deuses secretos / seitas cifras tarôs. / Tudo ficou aberto”.
À mesa da poesia, Felipe Fortuna
recebe o mundo aberto e faminto, no meio da carnificina humana e
do desatino cósmico. “O mundo se vasculha me vasculha.
/ Não exagero”. Atacado, o hospedeiro contra-ataca.
Felipe clica de repente e sucessivamente o mundo à solta,
como se fosse a lente Panoscan que permite aos peritos da NYPD captar
imagens em 360 graus das cenas de crime. “Tudo se abriu,
/ tudo ficou aceso e surgiu um palco / e súbito sumiram as
torres gêmeas”. Felipe retoma a experiência
dos anos 1920 oferecida em imagens por Dziga Vertov e a dos anos
1930 escrita em prosa por John dos Passos. Ele é a eye-camera
sensível e cosmopolita em tempos em que - estamos no século
XXI - o mundo anda de novo à solta.
O mundo à solta –
a coleção de poemas - fotografa como quem vê
tudo. Arquiva documentos. Comenta-os ao relento. Analisa-os fora
da faixa de pedestre. O poeta fica onde está, desde Canudos,
My Lai e Alcácer-Quibir. “Não Ultrapasse”.
Diagnostica os mosaicos que caem na forma de Guernica. Entoa um
mantra: “é necessário / reduzir os desastres
naturais”. Nenhuma catástrofe é natural.
As tragédias são tão fabricadas quanto a granada
que leva pros ares guitarras narguilés panos joias sedas
e o corpo inocente de Samir. O rapaz morre no souk “sem
saber, em meio à guerra, / como e por que barganhar”.
É preciso erradicar a pobreza. Combater a desertificação.
Por guardar na memória poética
os processos em aberto do século XXI, O mundo à
solta pode ser objeto de queima de arquivo, como a testemunha
que viu tudo. Aliás, o racista, que é vizinho, “entende
como se fabrica / um novo artefato explosivo. / Amanhã morrerá
um homem / muito diferente do intolerante”. Felipe entoa
outro mantra: “Tanto desastre também exige / reduzir
os orçamentos militares, fazê-los / tão pequenos
quanto uma continência”.
Não é só o mundo que anda
à solta. Como alegoria em mapa medieval, o fora da terra
- a rosa dos ventos - também está à solta.
Dos ares somos aspergidos de “herbicídio fungicídio
biocídio”. Os pilotos do B-29 sobrevoam a cidade
“(onde plantaram, cada um, / seus maiores cemitérios)”.
Abre-se a paisagem: “gás cianídrico tabun
napalm sarin”. Também o debaixo da terra está
à solta e mata: “foi decidido onde enterrar/dejetos
radioativos”.
Se é que ainda há lugar para os
Senhores da Paz, quando é que chegarão? Talvez nunca,
já que o mundo gira e “Todas as raças se
exportam. / Todos os credos comportam / ofendidos e humilhados”.
No entanto, “Todos sabem sorrir”. Nós
também, “nesse país pacato, tão /
disciplinado, há séculos reformado”. E ainda
o drone, que sorri em silêncio no poema, depois de desligados
os motores.
Felipe suplementa esse mundo “sobrecarregado”
com o cotidiano da Londres ordeira, onde invoca a boa poesia. O
mundo à solta está chocho. O dia a dia está
esvaziado de páthos; em ambiente jornalístico
hostil, os valores da boa poesia foram desocupados pelas intenções
políticas da arte. Nas suas “Idas & voltas a Londres”,
o espanto do “diplomata alerta” abre as portas como
um vagão. Nele sobem fantasmas de soslaio, almirantes defuntos,
vias férreas e telescópios. O espanto se constrói
com perguntas. Nenhuma resposta. Só o clamor pelas flores
distantes: “todo o jardim parece meu poema”.
Este deve “não ser lido por quem antipatiza”.
No entanto, se lido, se transformará não em explosão
ou em suspiro, “mas / num tuíte”. Desligados
os motores do poema, o poeta como o drone sorri.
Constituído e destituído
de páthos, O mundo à solta leva o leitor a
sobrenadar próximo à rosa do povo, enquanto veste
e protege o poeta com o escafandro da vida diplomática. Apaixonado
e ambivalente, O mundo à solta coloca Felipe Fortuna
entre os melhores poetas da atual geração de indignados.
As “astúcias da mímese”, para retomar
José Guilherme Merquior, fazem-lhe bem e o retiram do beco
sem saída de A mesma coisa, seu livro anterior. Pelas
fendas abertas pelo depoimento humano, O mundo à solta
respira o cheiro sulfúrico do milênio.
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